embora atrasada,
Tem de ficar marcado o dia em que nevou pela primeira vez.
De longe para perto, na partilha de olhares solitários, compulsivos.
embora atrasada,
Tem de ficar marcado o dia em que nevou pela primeira vez.
Desta não estava eu à espera.
Lembrar-me da minha Lisboa é como lembrar-me de uma Amiga que estimo demais. E por ela sinto aquelas saudades apertadinhas que dão vontade de chorar.
O paradoxo de estar totalmente afeiçoada às ruas de Leipzig e de sentir uma falta terrível da Júlio Dinis, da praça do Campo Pequeno, do caminho a pé para o Saldanha, do Picoas, do verde triste da Avenida da Liberdade, do Rato, de Campo de Ourique, do Tejo.
não há tempo para descrever tudo o que acontece e se sente.
Acontece de tudo um pouco e sinto-me Bem.
[Passei a usar as aspas como os alemães usam.]
Passei a gostar de leite frio quando tenho sede à noite. Nem sempre tenho tempo de aquecê-lo.
Passei a achar normal pagar 2 € por um café.
Passei a separar o lixo a sério e não a brincar como em Portugal.
Também passei a trazer sempre um saco na mala para o caso de ir ao supermercado.
E passei a ser eu a fazer a lista das compras.
Passei a olhar para o Professor como o meu colega mais prestável.
Passei a ver a cidade como a da minha rotina e não como um ponto turístico.
Passei a lavar a loiça do pequeno-almoço.
Passou a incomodar-me que o eléctrico se atrase um minuto.
Passei a também não atravessar a estrada com o sinal vermelho.
Passei a olhar com naturalidade aqueles que às 10 da manhã comem pão com salsicha e molhos.
Passei a não dar pela falta de guardanapos à mesa.
Passei a ver o correio todos os dias. (Ansiosamente.)
Aqui ninguém olha para a marca dos telemóveis uns dos outros.
Aqui a correria faz-se a pedalar na bicicleta.
Aqui as luvas fazem parte do dia-a-dia dos latinos.
Deixei de desperar quando surge um afazer. São demasiados, para se pensar no receio que temos deles.
O cheiro da minha casa, que no início me incomodava, identifico agora como o cheiro de um doce lar onde anseio chegar todos os dias, no percurso (gelado) de regresso.
Então passei a preocupar-me com "o que vou fazer hoje para jantar".
Sem dúvida. Aos poucos adaptamo-nos.
É este o meu caminho para casa. Nestas duas primeiras semanas, sempre a pé, cerca de 5 Km todos os dias, com as andanças necessárias. Agora, com um Passe semestral de 60 Euros, ando onde eu quiser, quando quiser, com máquinas em cada estação, painéis com os horários também em cada estação, nenhum eléctrico se atrasou até hoje, não espero mais do que 5 minutos, e como o frio começa a apertar o caminho a pé começa a ser substituído. A bicicleta está também à porta de casa, mas ainda não me habituei a usá-la.
É bom sentir-me nesta nova casa. No meu quartinho, com a minha nova cama, mas os meus lençóis portugueses (os alemães não dormem com lençóis...), com o meu computador (agora) sempre pronto a contactar com o que deixei temporariamente aí - já que só aí me lêem. Gosto do desafio de acordar e olhar directamente para a janela, ou seja para o céu, porque os almães também não usam estores nem cortinas, e lembrar-me assim que o despertador toca (porque o despertador tem de tocar, porque eu tenho de ser pontual nos compromissos) que estou mesmo cá, tive mesmo coragem de, pelo menos vir. Por enquanto, é um dia de cada vez.
É a caminhar, por vezes sozinha, por esta calçada, que eu sinto o tempo a passar e tento avaliá-lo. Mas definitivamente a escala de tempo, nesta experiência de Erasmus (não gosto de chamá-la assim, soa cliché demais, mas parece sê-lo assim mesmo), não tem uma unidade de medida certa. Acima de tudo julgo que o tempo passa devagar, e ao mesmo tempo é mais do que insuficiente para fazer tudo o que preciso. E é sobretudo insuficiente para quem desejaria parar para falar com cada pessoa de cada vez e contar tudo de maneira especial. Nem há tempo nem há forma de exprimir tudo o que se sente em tão pouco tempo.
Fala-se muito alemão, mais do que seria de esperar para quem lida mais com estrangeiros. Os espanhóis falam demasiado espanhol e os anglo-americanos falam demasiado inglês. O dicionário vem sempre comigo e o diário desta viagem especial também está por perto, mas também o tempo não deixa que lhe dê a atenção merecida. Assim sendo trago a máquina fotográfica, Fotoapparat como lhe chamamos, e a cada instante pode registar-se um momento diferente, uma imagem engraçada, ou pelo menos fora de vulgar, como de resto tudo o que sinto que se vive por aqui.
Enquanto é fase da exploração, o sentimento é de agrado, pelo menos porque há mais coisas entusiasmantes do que medo do que aí vem. Mas o certo é que vem e só aí veremos...
aber... kein Problem!
www.fotolog.com/debbiemiranda
Por engano nao consegui por um nome mais apelativo, e por irritação nao consigo sempre pôr fotos no blog. ora entao, fica definido, que têm outro link para guardar nos favoritos e manterem-se deste modo a par das novidades por cá ;)
Grüsse!
Welcome - Bienvenue - Willkommen - Bem-Vindo
Eis um palco de sensações fortes. O espaço que tenho vindo a conhecer melhor, porque contactado melhor. Mais. Mais intensamente. Quase. Sentindo já tudo tão na pele.
Sobre o frio do mármore ou outras pedras que combinam com o ar condicionado e o grande volume de espaço em redor, passeiam-se carrinhos para bagagem, arrastam-se pés de quem por lá vive, os sapatos de salto alto das hospedeiras, os sapatos engraxados dos business men, os ténis dos turistas, os sapatos gastos de quem parte ou chega em busca de oportunidades, saltando continentes.
No meio de tantas diferenças, sobressai o que de tão intenso encharca aquele ar. Despedida. Suave ou intensa, seca ou chorada, breve ou indeterminada, próxima ou distante. No meio de burocráticos processos a lembrar um pescoço de um passageiro ou um piloto cortados com um X-Acto, por entre papéis e despachos e muito dinheiro, é naquele espaço de autênticas chegadas e partidas que pisam vidas, experiências, passeios, devaneios e carreiras.
Viagens.
Sinto-me como nos filmes. Correndo para o aeroporto, pouco antes do embarque, para dar o último abraço, o último beijo, o último aperto, o último olhar, o último aceno. Porque a última lágrima não está agendada.
Mas depois de ficar tantas vezes, agora quero ir. E está quase a minha vez.
Eis o mês em que até os míopes vêem melhor. Cada dia que passa o Sol esconde-se um pouco mais cedo, parecendo chamar a atenção daqueles que gostam de aproveitar o tempo. Convencidos pelo espírito da rentrée a vários níveis enchemo-nos inevitavelmente de uma energia que dizem ser o verão a repor. E então, "este ano vai ser diferente".
Gosto das metáforas e da realidade simplificada aos meus olhos. Atravesso o olhar pelo comum dos mortais, ignoro o pensamento dele, quiçá também concentrado. Ambos relaxamos com a ajuda destes fios conectados aos ouvidos, cada um a transportar decerto uma energia diferente. Por detrás do seu perfil vejo uma paisagem alentejana, aquela que arriscaria dizer só o portugês nato e amadurecido saberá observar para além do verde e castanho secos.
Sinto como se os sobreiros falassem a toda esta carruagem, lembrando que o equilíbrio passa por olhar para eles com alguma frequência. Passa a senhora com petiscos para o lanche, quebrou a minha concentração, mas agora não me apetece comer, vou continuar a olhar.
Semelhante a um manual de instruções. Por fases, seguindo uma de cada vez, com cuidado, com se’s. Como num manual de instruções também há momentos em que não percebemos o que nos indicam, parece que algo não bate certo.
Folheio essas fases, embebida de inseguranças, de muita esperança, de sorrisos sinceros e transparência. Só disfarço as lágrimas, quando elas me atraiçoam. No fim de cada dia folheio mentalmente o que me trará o amanhã, a semana seguinte, o mês seguinte num fechar de olhos molhado, fraco e isolado.
Com o raiar de cada nova manhã correu nestas veias a tranquilidade, a vontade de subir àquele terceiro andar para lembrar a presença, o amor, o valor – e garantir que somos especiais, sem pretensões no entanto.
Depressa se escondem os traços outrora mais visíveis, aqueles que a todos familiarizam pelo tom inequivocamente superficial. Uma bola na rede certa, uma agenda cheia de cores ou um simples bonito dia de sol carregavam a força do sorriso que em todos queremos ver. Pois os traços lá se esconderam, frios sob os poros da pele, por onde agora só entram os olhares que nós queremos. Como se nos sentíssimos bem apertadinhos, naquele calor tão forte, o calor humano do núcleo do lar, preso num espaço também apertadinho. Um espaço para tudo o que é preciso. É dele que olho lá para fora, para os sorrisos que ainda espreitam acolá, lembrando-me novamente da perícia em que consiste o olhar para além da visão. E por isso é para este espaço que eu tenho a certeza que poucos estão a conseguir olhar. Aos que me e nos observam realmente, com aquela palavra certa ou mesmo aquele silêncio que diz tudo, a esses devolvo a garantia que é por eles que ainda olhamos lá para fora. Para aqueles que, de lá, se mostram capazes de estar atentos a todos os casulos espalhados pelas arestas das suas caixas de amigos.
Para os que mantêm um olhar inocentemente ignorante, cá dentro não somos capazes de declarar nada, pois a força do instinto amigo não se manifesta e creio que não compensa acenar para que nos vejam. Conformo-me, tranquila. Dói mais quando tantos daqueles pares de olhinhos que apareciam no parapeito do casulo, tantas vezes, fazendo parecer daquela fronteira um espaço tão mais amplo e harmonioso, não espreitam mais, por qualquer motivo que quase parece não ter agora importância alguma. As marcas dos cotovelos apoiados no parapeito ainda se vêem, mas a erosão vai tratando do assunto. Faz-nos acreditar que é possível já ter passado, que não há lugar para rancores num espaço tão pequeno, num tempo tão valioso.
Tudo porque o semblante oscila e nem sempre aquele mais escondido está ao alcance do olhar de quem gostaríamos, ou de quem seria suposto. Importa assim recarregar as forças do casulo, queimar os ácaros das arestas e, se Deus quiser, sair enfim de volta para o mundo dos semblantes, onde então o nosso lembrará a hierarquia dos valores.
Porque arrisco dizer que só nós temos este espírito, este de quem se agarra a uma causa como se pouco ao nosso redor ainda fizesse sentido louvar sobre uma Pátria fora das memórias áureas. Portugal faz HOJE História, o nosso apesar de tudo tão querido País representa-se de uma forma que nos faz reconhecer como há alturas em que a força para ostentar o Vermelho, o Verde e o Amarelo é profunda demais. Nada como a força de vontade que nos caracteriza para pôr de parte os tão sempre emergentes pessimismo, falta de confiança e prontidão para a crítica. Porque, como o bom Português tão bem sabe fazer, à última da hora é que nos lembramos que podemos vencer. Aconteça o que acontecer, já vencemos, pois já pudemos, neste arranque crítico do novo milénio para os Lusos, voltar a gritar com aquela garra que faz as lágrimas quererem saltar para também fazerem a festa.
Escrevi este texto em Fevereiro passado e não sei ao certo por que não o publiquei na altura. Talvez a clara transparência, passe o pleonasmo, me fizesse crer que o deveria mostrar a quem o soubesse ler como o escrevi. Mas sujeita a esta eterna espera de feedback, e porque nada melhor do que esta fase de transição académica da minha vida, ei-lo
É favor cantar com a melodia do Dartacão :)
[de volta às origens.]
Falta pouco para esse auto-teste, sem que dele precise de tirar provas para quem quer que seja. Mas aproxima-se impiedosamente a data marcada em que terei de pôr em prática tudo aquilo em que tenho pensado, sobre o que tenho escrito, que me tem atormentado e encorajado, nuns dias mais, noutros menos. Nessa altura não terei tempo para projecções, talvez nem sequer expectativas. Não as quero, por me faltar a bagagem que permita construí-las com razão. Estou forçada a este amadurecimento radical porque assim o quis, porque graças a Deus tive várias manhãs de sede de fazer, tendo hoje um pequeno caminho esbatido por onde decidi que me vou aventurar.
Um tic tac que baloiça para um lado e para o outro, hipnotizando quem por ele se deixa absorver. É o paradoxo da minha alma, neste tempo de flores, decisões, calor e tensão. Porque me apetece muito sair e sentir o bafo quente tocar-me a pele e porque não saio, digo eu que não posso, tenho coisas para fazer. Em vez de fazê-las fico a pensar em mim, não responsável mas egocêntrica, e tanto ao ponto de não ter visão para o que me rodeia. Penso em mim e decido que não vou planear-me dessa forma, que não me é saudável, que devo pôr o pé à frente em vez de andar como há 20 anos neste pé-ante-pé-recuado. Em todo o caso acabei de não sair por achar que não podia, para no fim concluir que o que mais quero é contrariar-me nesse terrível defeito que me prende. E a ele me prendo continuamente, e nele penso, para novamente amanhã querer decidir e fazer e levar avante uma ideia, ínfima que seja, e ter quase a certeza de que não o farei, por alguma razão que o tempo que digo não ter não me deixa apurar. Confundo-me comigo mesma, oiço o fado do campo pequeno e sorrio pelas coisas boas que posso saborear, para no instante seguinte as pálpebras fecharem e abrirem num movimento melancolicamente lento. Confundo-me na minha própria imagem, há minutos tão serena e feliz, agora tão apaticamente triste. O meu coelho rói-me as calças como quem me chama à terra que ele pisa ali em baixo, "taninha, reage". E eu não reajo, por saber que estes dias não têm solução. Então imagino-me sob o ar gélido da neve e das ausências que somente imagino, e cai por terra toda a força de vontade que tenho acreditado que está em mim, guardada para explodir quando for preciso. Não sou mais expectante, não sou mais pensante sequer, pelo medo de dias como este que hei-de ter. E o bafo lá fora sufoca-me por não saber que atitude devo tomar.
Sem palavras, com amor, sem remorso, com perdão, sem falácia, com cumplicidade, sem cinza, com força, sem presentes, com olhares, sem destino, com sorte, sem aliança, com passeios, sem novela, com enredo, sem desconfiança, com orgulho, sem vazio, com verdade, sem ausência, com história, sem transtorno, com amizade, sem favores, com compreensão, sem prisão, com lágrimas, sem lágrimas.
Sem certezas, com esperança, com memória, com saudade.
Como um filhote às ordens das sete colinas, a beira-rio da minha cidade delicia-me.
Delicia-me o cacilheiro cor-de-laranja que me leva ao caminho para as praias de São João e ao “Atira-te ao Rio” da Trafaria.
Delicia-me o Padrão dos Descobrimentos, a Torre de Belém e o Mosteiro dos Jerónimos a protegê-los com o olhar, impondo a quem passa a memória dos tempos áureos lusitanos.
Os pastéis de Belém são deliciosos.
A homenagem aos combatentes do Ultramar delicia o meu orgulho familiar.
São deliciosos todos os momentos de que podemos desfrutar desde o Parque das Nações até ao fim da grande marginal, passando pelos petiscos nas esplandas das Docas, pelos cafés a ver o Tejo, pelos passeios ali a pé, pelas corridas de patins em Algés e pelo luar na companhia da ponte 25 de Abril.
Porque não há como esta cidade que espelha no Tejo a rendição de quem a visita, venha de onde vier. Lisboa é luz e água.
Meditar sozinho, estudar com amigos, namorar, passear com a Família, brincar na relva… ou simplesmente olhar e respirar. É essa vontade que se sente à beira-rio de Lisboa.
… perdeu-se uma vida. Jovem.
… perdeu-se um filho.
… um corpo desfez-se.
… começou um trauma.
… algo numa Família perdeu sentido.
… outros números foram ignorados.
… os media esbracejaram.
… não houve tempo para despedidas.
… houve muitos arrependimentos.
… houve pena.
… lembrei-me do Eduardo.
… parou-se para pensar.
… o tempo parou.
… o alheio aconteceu connosco.
… a coincidência assustou.
… a estabilidade fez-se estilhaço.
… a confiança traiu.
… um fenómeno nacional perdeu o seu sentido para, quiçá, ganhar outro.
… soltaram-se os clichés.
… a fama pareceu ensinar.
… o adulto não soube explicar.
… a Televisão (i) exagerou.
… explorou-se a dor.
… cresceu a apatia.
… cresceram as romarias.
… o amigo sofreu.
… dois irmãos angustiaram-se.
… questionou-se o habitual.
Num instante o choque alastrou e mais uma vez a dor viu-se efémera para uns e eterna para outros.
A revolta face à exploração mediática da morte de um jovem, apenas porque era (!) um ídolo para muitos adolescentes, faz apetecer o off da televisão, como se não interessasse. Começamos a deixar de ter espaço para fazer o nosso juízo de valor, como se não nos deixassem sentir mortes destas sem nos emocionarmos com as imagens do jovem ao som de músicas que apelam ao amor pela vida, sem passarmos SMS e outras mensagens de condolências, sem seguirmos as cerimónias fúnebres pelo pequeno ecrã.
Não sei nem cabe a mim saber o que é correcto dizer ou pensar acerca de um fenómeno destes.
Resta-me respeitar aqueles para quem, num instante, a vida não seguiu em frente.
Cada dia que vivo, anseio pelo próximo, não pela sede de viver, mas pela vontade de ver já passados os desafios que me surgem. Não obstante sinto a cada dia mais um pouco dessa sede, por a cada dia ouvir e ver vivências que julgam obrigar-me a saborear cada instante respirável. “A vida é curta”, “Carpe Diem”, “Sê optimista” não me convencem, mesmo que não saiba justificá-lo. Pois o que tem vindo a conquistar esta vontade de reagir à minha apatia tem sido algo que não sei definir, creio que por ser contínuo. E isso orgulha-me. Fui ensinando a mim mesma, em quase todas as oportunidades que tive, a forma de vivê-las com menos receios, com mais vontade e descontracção.
Hoje deparo com a inevitabilidade de parte do meu futuro e, simultaneamente, com a terrível responsabilidade de ter uma decisão nas mãos. Neste interior que, tão bem tantos sabem, canta fados cinzentinhos, chocam as células habituadas ao conformismo pessimista com aquelas que, mesmo fortes, não têm força suficiente. E nestes momentos de solidão caseira vence-me a frustração de querer estar lá fora, de casa, da cidade, do país, de mim mesma, e não poder, porque não faço, porque não quero realmente. Querer é poder, esse sim é um cliché no qual muitas vezes acredito. Pela primeira vez sorrio por sentir verdadeiramente que quero um pouco mais, porque tive a modéstia de partir sempre de um ponto em que não seria capaz de nada. Então era como se não quisesse.
E tudo graças ao que me rodeia. Às pessoas, aos amigos, aos inimigos, às imagens, às notícias, à minha imaginação ambiciosa. Tudo graças aos que me aturaram, dando-me a certeza de que, aproximada de alguém parecida comigo, eu saturaria facilmente. Não deve ser fácil conviver com quem está constantemente a dizer que não, quando na maioria dessas vezes poderia dizer que sim. Quem baixa a cabeça quando tem motivos para sorrir.
Não posso negar que tenho as minhas razões para ter inseguranças, pelo menos desde que, há cerca de três anos, saí da protecção colegial para ouvir os comentários gelados sobre os futuros com “n” adjectivos. Tantas razões quantas as que podem designar para me acusar de egoísmo e egocentrismo. E mesmo assim eu não cedo, por a escrita ser ainda o meu poço preferido de fraquezas.
Ora, admito, já estas palavrinhas parecem carregar outro alento para dentro desse meu poço profundo e misterioso. Quem sabe eu não esteja mesmo a ganhar forças?
Cada nota tocada na bateria, no piano, na guitarra ou na flauta do Musicentro, senti-a na sua individualidade, absorvendo a melodia que tanto ali me diz.
Os papelinhos de orientação da Eucaristia foram substituídos pelo retroprojector, num acto disfarçado de uma poupança de papel traduzida em tecnologia de luxo.
A entrada é de vidro, com portas automáticas. Ao lado, a homenagem ao Pe. José Alberto Mendes recorda os valores daquela Casa. Os momentos fortes. No corredor para o pátio do primeiro ciclo e outros, as luzes acendem também sozinhas. O campo de terra é agora de um verde sintético, cheira a novo. Nele e no novo pátio, de um soalho-atenuante-de-quedas, sente-se a corrida do tempo, lembram-nos que não estamos lá. Os miúdos, ou meninos, correm atrás de uma bola, esfolam as calças Ralph Lauren e sujam as camisolas da Gap.
Naquele antigo terraço nasceu agora uma biblioteca, toda em vidro. Finalmente um espaço maior, com mais mesas, mais livros, mais interesse. E ainda assim insistimos, alguns, na crítica ao uso ostensivo dos milhares de euros que todos ali deixámos.
O Colégio está sobrelotado, é uma elite. Os Finalistas, já não tão vestidos a rigor, não têm também já lugar junto ao altar. No pórtico do Secundário parece que ainda chove através do pseudo-tecto roto.
Mas a melodia da Missa de S. José abafa todas essas imagens, brilhantes e luxuosas, das quais falamos como se nos envergonhasse. Não percebo porquê. A oração que invoca todos os alunos das Oficinas de S. José orgulha-me. O "Onde Tu Estás" a decalcar uma voz insubstituíel arrepia-me. Os temas que não conhecia lembram-me igualmente que já lá não estou.
É nesta oportunidade de regressar à minha Antiga Casa que, na qualidade de "Antiga Aluna", renovo o ar que me adensa a alma. Deixa de interessar se saio de uma instituição que mal tem dinheiro para pagar a electricidade, para ir para uma casa católica onde tudo se paga a muitos zeros por mês. Vou sim de uma instituição académica repleta de hierarquias arrogantes para uma casa em que a pedagogia também pode tratar-me pelo nome. Convidam-nos para ir, para visitar, para estar, para perguntar, para aconselhar.
Chamem-me lamechas, mas os Salesianos acolhem-me. Qual colheita de frutos.
Despertador. Telemóvel. Pantufas e robe. Chuveiro, água quente. Toalha. Televisão. Roupa. Frigorífico. Leite e pão. Relógio. Chaves. Mala. Elevador. Guarda-chuva. Poças. Pessoas. Prédios. Carros e semáforos. Quiosque. Portas, escadas, portas. Livros, papéis, canetas e óculos. Um professor. Colegas. Amigos. Um café numa mesa de um bar. Escadas e portas. Poças, pessoas e prédios. Metro. Bilhete. Luz branca. Silêncio. Olhares fugitivos. Jornais. Multidão. Mais poças, mais prédios, mais pessoas, mais sacos, mais livros. Relógio. Telemóvel. Mendigo. Portas e escadas. Carteira, moedas, notas. Pão. Mesas, cinzeiros, casacos pendurados nas cadeiras. Relógio. Telemóvel. Portas abertas. Poças que passam a correr. Metro, multidão, mendigo cego, indiferença, relógio, sacos. Pessoas. Chaves e portas. Casa. Pantufas. Leite. Sofá. Televisão, computador, telemóvel. Ecrãs. Pessoas. Família. Pratos, refeição quente, palavras. Papéis e ecrãs. Cama. Almofada.
Pensamentos.