31 agosto, 2005

De repente...



Aqui está um dos cenários de uma das minhas paragens nestas férias. Uma praia, um descanso, uma sensação de bem-estar. Fui atrás desta imagem quando parti para o Algarve. Estávamos a 30 de Julho. Apanhei sozinha o Expresso com destino a Lagos, uma mala cheia de roupa e sapatos que me enchia de um entusiasmo fútil pelas saídas à noite, pela praia e, claro, pela companhia, não fosse eu ter ido para casa de uma (já muito) amiga. Excitação, sentia eu, vou de férias, finalmente me vejo de novo num autocarro, por minha conta, a caminho de um lugar para o qual fui convidada ou que me suscitou interesse em conhecer. Não tenho dúvidas que é uma sensação diferente daquela que invade, por exemplo, os meus colegas de faculdade que têm de andar naqueles autocarros todos os fins-de-semana para verem a família e o verdadeiro quarto, felizmente tenho a sorte de manter os meus caprichos enquanto estudante universitária filhinha-do-papá-e-da-mamã. Ali foi diferente, lembrei-me das viagens que fiz para norte e sul noutros verões, à procura de dias de puro divertimento.
Eis que me envergonho de tudo aquilo. Já devia ter aprendido. Cerca de meia hora antes de chegar a Portimão, algo pesado aconteceu naquele espaço de poucos metros cúbicos onde se juntava gente desconhecida. Um passageiro bem perto de mim sentiu-se mal. Era um senhor negro, com os seus quase 30 anos, pensei eu, que vieram a revelar-se 40, era alto e muito magro, tinha uma expressão de criança inocente e um algodão com ligadura colado a um dos lados do pescoço, que a camisa aos quadrados deixava visível. Reparei nele logo à entrada do autocarro, quando o motorista o repreendeu, impaciente, por alguma coisa relacionada com o bilhete e ele foi para o fim da fila com ar resignado.
O senhor foi ao WC, pediu água a uma senhora e, já no seu lugar, começou a contorcer-se. Achando estranho e já muito assustada, olhei para ele e entrei em pânico com os seus olhos muito abertos, um encarnado de aflição afundado naquele branco que ostentava dor. Fiquei estupefacta, não sabia como reagir àquele olhar que pedia socorro, queria fugir dali, envergonhada com a minha roupa condizente e os meus óculos escuros de marca por trás dos quais olhava para ele sem reagir, sem ajudar, suspirando hipocritamente quando ele desviava o olhar para se contorcer novamente no banco, de repente caiu naquele mísero espaço que o separava do banco da frente, esticando-se na esperança vã de encontrar algum alívio. Mas não.
Aliviei-me eu quando uma senhora, que se sentava no banco atrás do dele, finalmente tomou uma atitude, uma senhora que dali, longe, me fez sentir duas bofetadas em cada face para acordar. Por instantes lembrei-me dos jornalistas, tão próximos de cenários tão dramáticos e perigosos mas tão distantes por detrás dos seus microfones e câmeras em rec. Mesmo assim o que eu sentia era diferente, era mais humano, simplesmente egoísta, por ficar obcecada com o cenário e essa obsessão me ter impedido de ajudar o pobre senhor. Uma ajuda que começou, finalmente, com a dita mulher. "O que é que o senhor sente?", repetiu tantas vezes quantas as que ele não respondeu, não por não ouvir, mas por não conseguir falar, ele agonizava, rebolava, irrequieto, até por fim se deitar no corredor central do autocarro, fixando aqueles olhos arregalados no tecto como quem pede ajuda ao Céu. Em pouco tempo todo o autocarro se apercebeu do que se passava e alguém - que não eu - foi avisar o motorista que um senhor estava a sentir-se mal. Obviamente não olhou para a imagem dele, ali estendido no chão, senão não teria resmungado "já estamos quase em Portimão". Aqueles minutos pareciam uma eternidade, de repente toda a gente ofereceu as suas garrafas de água e os seus pacotes de açúcar, inclusive a senhora simpaticíssima que ia sentada ao meu lado, perguntando-me informações sobre o senhor, já que eu o via melhor. No meio daquelas pessoas que costumam ser tão mal-encaradas eu passei a viagem toda, até àquele instante, animada por finalmente um dia ter ficado ao meu lado uma senhora de idade que até perguntou se eu era servida da sua tangerina. Mais, lia a revista VISÃO e não a Maria, o que me fez perceber que não devia ser tão generalista. Voltando ao senhor, depois de ingerir um ou dois pacotes de açúcar levantou o tronco e tentou acalmar-se, seguindo a sugestão de um outro senhor que se prontificara a ajudá-lo, de cócoras em frente a ele. Mas era difícil. O senhor começou a chorar, desesperado, emitindo uns grunhidos que ninguém entendia, enquanto o outro de cócoras agarrou nele e o tranquilizou. Sim, tocou-lhe, sem preconceitos, como quem enfiava nova bofetada em cada passageiro daquele autocarro, incluindo eu. Caramba, eu não sou preoconceituosa, desde que vi o senhor a entrar no autocarro que ele me prendera a atenção, querido, inocente, frágil. Quis lá saber da cor da pele dele. Não quis, mas quis, não sei, sei que não me mexi. Quem eu acho que teve uma atitude manifestamente preconceituosa foi uma senhora, loira, bonita, vistosa, inglesa, a comentar, no meio da azáfama que de repente se instalou num único autocarro, "I'm a doctor, and this man is really sick", olhando para ele de cima. Abafei a minha surpresa por a senhora não se ter aproximado dele mais de um metro, pensando simplesmente que a postura dos médicos lá da terra dela podem ser diferentes, ou ainda que a única solução que ela julgara sensata seria não fazer nada até pararmos algures.
À entrada de Portimão passámos a 50 metros do Hospital, mas o motorista naturalmente não quis parar, o posto de bombeiros fazia mais caminho para o terminal. Comecei a achar que os comentários que se ouviam acerca de já se ter chamado o INEM eram falsos, pelos vistos todos foram como eu e ninguém se lembrou de usar o seu telemóvel para ligar o 112, garantindo assim que a aflição daquele homem não duraria muito mais tempo. Sei que de repente vi cinco bombeiros a entrar no autocarro pela porta traseira, a expressão de heróis-da-Tvi estampada no rosto. "Então diga-nos lá o que é que o senhor sente", disse-lhe um, com ar de desdém, um rubor crescente de raiva a apoderar-se de mim, mas claro que nem quando tenho razão salto da casca. O pobre homem, cada vez pior, já de tronco nu a exibir a magreza e uma outra ligadura, desta feita no peito, nem conseguiu responder, só queria que a dor lhe passasse, não sabendo onde nem como isso seria possível. O bombeiro, com um sorriso subtil de orgulho por todo o autocarro olhar para ele, tirou muito calmamente a caixa de primeiros-socorros de cima do pequeno WC, retirou um copo de plástico para café, colocou água, desfez nele mais um pacote de açúcar e ficou mexer durante eternos segundos. "O senhor é médico? Sabe o que está a fazer?", perguntou uma rapariga da minha idade, sentada à minha frente, indignada. "Sou bombeiro", respondeu ele, com o sorriso ainda mais visível de tanto orgulho. Continuou, dirigindo-se ao doente: "Beba isto, vai se sentir melhor". O doente bebeu com a expressão clara de quem já faria tudo o que lhe pedissem, desde que o tirassem dali, afinal, já tinha ingerido três pacotes de açúcar sem ninguém saber o que ele tinha, podia ter a patologia com o nome mais complicado relacionado com excesso de açúcar no sangue ou coisa parecida, mas para aquele bombeiro e para muitos ali presentes o senhor estava apenas com uma "quebra de tensão". Entretanto, quando lá ajudaram o senhor a sair - ou arrastar-se - do autocarro para que esperasse pela ambulância e pudéssemos seguir viagem, a agitação instalou-se lá fora, tendo a médica inglesa estado presente para retirar algumas informações. Cá dentro, onde eu permanecia estática e muda, a primeira mulher que ajudara o homem comentava agora, eufórica e em tom estridente-estilo-peixaria: "não bastava terem entrado aqui 5 bombeiros que não percebem nada do assunto ver o homem e assustá-lo mais, ainda tem aquela mulher que nem fala português meter-se ali a atrapalhar!" Respondeu-lhe a rapariga corajosa que seguia à minha frente, "ela é médica, minha senhora".
Quando todos os passageiros regressaram aos seus lugares, excepto o homem que ali ficou com os bombeiros, tão sozinho quanto já estava, retomámos a viagem. Em tom de rescaldo, desesperada com tanta vergonha, atrevi-me por fim a perguntar a uma jovem que teria estado lá fora com a médica, se tinham descoberto qual era o problema do senhor afinal. Respondeu-me quase em sussurro, a expressão séria no rosto: "Tem um tumor".
Engoli em seco.
As asneiras sucediam-se, não sei porquê mas decidi informar a idosa ao meu lado que afinal o senhor não tinha quebra de tensão nenhuma (isso eu teria calculado, mas de nada serviu), era um tumor, "ai, coitadinho do senhor", respondeu ela. Talvez tenha ficado com a sensação de alívio depois de finalmente ter falado, mas afinal o senhor ficou lá, a minutos do hospital, pronto para se tratar de uma doença grave. Eu segui, com a minha roupa condizente e os meus óculos de marca, para o meu destino algarvio, os pensamentos sobre aquele homem a esconderem-se na mente, qual indivíduo com vida razoável a ignorar um mendigo por quem passa na rua.
Senti-me um nojo.
Quando vi este mar, algum tempo depois, na manhã de um domingo no Algarve, e tirei esta fotografia, acordei. Apercebi-me que me lembrei daquele homem, negro e escanzelado, todos os dias que se seguiram. Quis saber onde e como ele estava, quis aplicar a minha vontade duradoura de fazer voluntariado num qualquer hospital, quem sabe até no IPO, mas isso seria muito pesado. Seria e foi. Percebi ali, mais uma vez, de frente, sem ser pela TV ou por histórias ouvidas, que a doença dói, faz sofrer, faz chorar. Lembrei-me dos bombeiros, que sem dúvida respeito e a quem agradeço por terem poupado o país de arder todo, e desejei que algum médico já tivesse tratado aquele doente tão transparente.
Olhei para aquele mar com tristeza. Sem reacção. Estática e muda. E continuei as minhas férias.

28 agosto, 2005

Willkommen


Bem-vindos! Sugiro que leiam a mensagem de apresentação deste novo blog para que entendam, de alguma forma, a razão pela qual adoptei um novo espaço. Formalismos aparte, espero que isto (re)sulte...