20 outubro, 2008

Um dia na capital económica, em tempos de crise




Münsterplatz, fim de dia de Outono com sol


Na esplanada que me acolhe em momentos de introspecção, bebo o meu sumo de cereja-banana (KiBa) e recordo esse domingo.

Resolvi ir até Frankfurt. Ou melhor, no que diz respeito ao "ir", fui com quatro pessoas que não conhecia. Já aqui escrevi que me tornei fã do site www.mitfahrgelegenheit.de. Do site e da mentalidade. Indicar local de partida, destino e data. Surgem os contactos dos condutores dos carros, com horas e indicações. Desta vez no entanto, para o horário que eu queria, surgiu-me um contacto de uma senhora que comprou um Wochenendeticket. Um WE-Ticket é um bilhete de comboio de fim-de-semana, que custa cerca de 30 € e com ele podem viajar até 5 pessoas pela Alemanha fora, dentro desse fim-de-semana. Para a dimensão de Portugal seria (ainda mais) paradisíaco, mas a Alemanha é grande; não dá para ver tudo num fim-de-semana à velocidade dos comboios regionais.



Liguei à senhora, perguntei se havia lugar para mim e anotei mentalmente: "sou pequenina, magrinha e tenho um grande nariz". Anotei o sorriso telefónico também.

Lá fui para Colónia às 10 da manhã. Bona foi a capital, mas a verdade é que tudo se concentra em Köln. Não me importo com isso, mas senti-me burra porque acabámos por passar por Bonn na mesma. Nada há-de solucionar o meu inexistente sentido de orientação.

Estava à hora certa em Köln Hauptbahnhof, na linha 9 B-D. Mas não via a senhora pequenina e magrinha. Vi um rapaz muito estilo beto clássico, cabelo loiro puxado para trás com brilhantina, camisa e sapatos a brilhar também. Parecia desorientado. Tirei a música do ouvido para ouvir o que dizia ao telefone: "Já aqui estou na linha 9, mas não a vejo...".

Ah, bom! É dos meus, então. Segui-o e encontrei o grupo dos cinco. Cada um com o seu "coffee to go" na mão, um frio de gelar o nariz e as pontas dos dedos e assim entrámos no comboio. Fizemos logo as contas para evitar chatices (que a Alemanha é um país civilizado, mas aldrabões há em todo o lado). Paguei 7 €, ao contrário dos 40 € que o comboio "convencional" (embora mais rápido) pedia.

Portanto lá estava o beto clássico, estudante de economia (sentia-se-lhe o crash nos olhos!), a senhora magrinha e pequenina que ia visitar a filha a Bayreuth (que eu não faço ideia onde fica) e mais duas raparigas: uma com ar de russa, cabelo no ar, livro em inglês, telefonemas numa língua claramente de leste; e uma outra, loirinha, relaxada e sorridente, que tinha um aparelho para endireitar a perna.

Conversámos o essencial no início. O alemão não faz "small-talk" por fazer. Não há cá conversas sobre o tempo, até porque ele raramente muda. Então, pouco depois, três liam, outra ouvia música e aqui o piolho... dormia.

Mudámos de comboio em Koblenz. Aí já me senti a viajar. Não conhecia o estado, as paisagens. E até as carruagens eram diferentes. De maneira que aí deu para cada um de nós ficar à larga num conjunto de quatro cadeiras. Menos eu, que preferi ficar com a loirinha do aparelho na perna. Parecia muito simpática. O discurso foi o mesmo de sempre:

Sobre mim: "E és de onde mesmo, em Portugal?", "Só cá estás há dois anos e já falas alemão?", "Gostas da Alemanha?" (como se não fosse suposto) - e a parte que eu mais gosto: "Na Deutsche Welle? Nada mau."

Sobre ela, também o discurso típico da alemã-não-alemã: viveu uns meses na Nova Zelândia, foi visitar uma amiga a Colónia, agora ia visitar uma outra a Frankfurt e depois voltava para a sua formação de fisioterapia. Mais tarde? "Nova Iorque, para já. Quero conhecer o mundo."

Acabámos por adormecer as duas com o silêncio das carruagens alemãs sobre os carris. A pouco mais de meia hora de Frankfurt, achei que já chegava de dormir. Até que de repente entra um senhor na carruagem e senta-se ao pé da senhora magrinha e pequenina. Tinha daqueles carrinhos que muitas pessoas mais velhas usam por aqui, cheio de papéis. Não percebi de imediato se era um mendigo ou uma pessoa vulgar, tinha barriga e barba grandes. Logo confirmei que era meio formado, meio maluco (para os padrões alemães, entenda-se), quando se virou de repente para a senhora pequenina e magrinha e perguntou, do nada:

- Desculpe, posso fazer-lhe uma pergunta? O que pensa desta crise financeira?

Aqui o piolho, a russa e a típica alemã-não-alemã ficámos logo com pena da senhora pequenina e magrinha, que percebemos ter ficado atrapalhada. "Não penso nada, porque não percebo".

Resposta errada. O senhor estava a escrever um livro sobre o assunto e via-se que estava muito irritado por a crise (que ele já teria previsto) ter rebentado antes de o livro ser publicado. A partir daí, assistimos a um seminário de crise financeira até Frankfurt, com críticas severas ao governo alemão. Lá pensava o piolho: critique, meu senhor, até conhecer quem governa aquele país para onde você gosta de ir no Verão. É que se o seu país se afundar, não pense que pode ir para lá trabalhar.

Isto, repito, porque estou convicta que eu e a Frau Angela Merkel vamos salvar o mundo.



Chegámos a Frankfurt. A alemã-não-alemã tinha a amiga à espera na Hauptbahnhof, que por sua vez tinha bilhetes de metro de grupo e me levou à estação da Feira do Livro para eu não pagar. Prático, não? Segundo a teoria da minha Mãe, "quem é que não quer ajudar essa carinha redondinha?"

Quanto à Buchmesse em si, a tal "maior feira do livro do mundo", devo dizer que fiquei tonta com a dimensão. E recorde-se: por 12 Euros. Torres e mapas e postos de informação e pessoas - muitas pessoas. O país convidado era a Turquia, o que no fundo deu à feira uma imagem da Alemanha tal qual ela é: loiros e altos misturados (ou não) com peles mais escuras e véus islâmicos.



Como se na redacção não me sentisse já suficientemente "na terra", decidi ir ao pavilhão da literatura portuguesa. Numa das editoras do país da saudade reconheci a cara do proprietário, provavelmente de um dos stands da calorosa feira do livro de Lisboa, onde outrora distribuí panfletos até mais não poder, para juntar dinheiro para o meu Erasmus em Leipzig. Logo aí, achei irónica a situação.

Mas mais irónica foi a abordagem que fiz ao tal senhor. Depois de pegar num livro que seleccionava os melhores poemas de Fernando Pessoa, perguntei o preço, que o senhor teve de consultar. Logo se dirige à sua colega, bem portuguesa, e ri-se como quem esfrega as mãos, dizendo "já fiz um negócio". (Recorde-se que a Feira do Livro de Frankfurt começa a ser conhecida pelas presenças, muito mais do que pelas vendas). Resolvo perguntar se "está tudo a correr bem". A senhora apoia o queixo na mão, cotovelo sobre a mesa, e desabafa "Já estamos fartos disto, queremos ir para Lisboa".

Bom, preferi não comentar. Logo se aproximou uma senhora alemã, com um livro na mão, e perguntou em alemão "quanto custa?". O senhor olha para mim com um autêntico ar de sem-pachorra e pergunta-me, A MIM, "o que é que ela 'tá prali a dizer???".
Não quis acreditar, mas resolvi sorrir e responder à senhora, não fosse ela pensar que todos os portugueses são assim.

Ainda perguntei ao senhor se estavam a trabalhar em conjunto com as editoras brasileiras, que tinham os seus stands mesmo ali ao lado. Mas ele bem (mal) me respondeu que "não temos nada a ver com eles". Eu disse que achava estranho, porque a cobertura jornalística dava uma ideia de união entre as editoras. "Não, não..."

Quem vê uma pessoa assim e generaliza, pensa que o português está de mal com a vida.

Bom, o senhor lá põe o meu livro num saco e diz todo gabarolas "que até leva aqui uns presentes". Lápis, caneta, régua. Começa a ferir-me a susceptibilidade. Nem com óculos me levam a sério? Como uma adultinha - ou vá, uma adolescente grande?

E à sua última pergunta, sobre o que eu estava a fazer aqui na Alemanha, não resisti a tentar pela última vez:
- Eu trabalho cá como jornalista. E por isso lhe perguntei sobre a cobertura da feira, porque a Deutsche Welle esteve cá e provavelmente falou consigo.



Arregalou os olhos. Que bem que me soube vê-lo aflito.

- Sim, esteve cá um rapaz... - disse ele, já cheio de convicção.
- Pois foi, o meu colega Márcio.

Como, de repente, senti que falava sozinha perante a perplexidade dele (provavelmente por achar estranho um piolho português já trabalhar), desejei-lhe continuação de boa feira e fugi para os pavilhões de literatura... dos Países Baixos. Diga-se, dos lá de cima.



E a propósito: voltei para Bonn numa outra Mitfahrgelegenheit, desta vez de carro: um BMW a percorrer as estradas alemãs sem limite de velocidade. Ida por 3 horas e meia a 7 euros, volta por 1 hora e meia e 14 euros. Em tempos de crise, não me posso queixar. E foi um dia sui generis, para relembrar ao sabor de cerejas e banana.