27 janeiro, 2007

Um frio delicioso



Como se o frio não atacasse os músculos da cara, já a chorar do vento contra os olhos, a verdade é que sorrio, sozinha no meio da rua, caminhando para casa. Rondam os dez graus negativos mas não quero apanhar o Straβenbahn, quero pisar a almofada branquinha de neve sob os meus pés, esses onde fixo o olhar, de cabeça agachada para impedir que os floquinhos me acertem nos olhos. Mas qual criança que tenta ir contra as recomendações, não resisto a levantar o olhar para ver os casacos salpicados de pintas brancas, as pegadas anónimas marcadas no chão branco, as bicicletas a deslizar sob condutores corajosos – cujos olhos não se vêem –, o sentido protector das já familiares Neues Rathaus e MDR, como que controlando o que se passa lá em baixo.

De repente o espaço parece fechar-se e uma espécie de estúdio de som apodera-se das ruas. Nem o uivar do vento, forte, cortantemente forte, tem a força de antes. De ouvir o vento passo a vê-lo, no reboliço que provoca na neve do chão, feita remoinho a esvoaçar para o incerto. Os sons são abafados. Os carros são silenciosos e parece até que as pessoas ficam fisicamente mais próximas.

Vejo tudo com absorvência, sorrio, fotografo, tenho vontade de telefonar a alguém só para dizer que estou encantada ou que quero companhia para fazer um boneco de neve. Mas na realidade estou apenas a ver; a capacidade de descrever com exactidão parece ter de facto congelado. Não consigo abstrair-me porém da ideia de que não fugi à minha rotina, não procurei aquele cenário, ele é que se cruzou comigo num mero dia de aulas.

A cidade tornou-se outra. Para os nórdicos, tristes com a chegada efectiva do Inverno, o manto branco é um incómodo. Para mim – de “pele castanha”, como eles dizem – o Inverno ganhou outro encanto. Teria sido já suficientemente saboroso passar mais uma tarde naquela wunderschöne Bibliothek, onde não há lugar para todos os estudantes que se encontram para estudar e fazer pausas para um café – e não os que se “encontram no café e aproveitam para estudar um pouco”. Já é – desde há muito – suficientemente saboroso estar ali sentada e não ver ninguém à minha volta que fale a minha língua, nem tão-pouco os senhores que me deram os textos que vou para ali ler. Já é suficientemente gratificante, enquanto estudante, falar com orgulho deste livro, daquela pesquisa, daquele trabalho, sem sequer pensar na hipótese de nos sentarmos numa mesa onde um aviso indica que “aqui não é permitido estudar”.

Teria sido tudo tão suficientemente alucinante só por perceber que estou num espaço deliciosamente não-familiar. E ainda pude desfrutar da sensação, quente, de desviar o olhar para a janela e ver a neve cair com força. Só aí esqueci os deveres de estudante, voltei a ser criança, arrumei tudo e corri lá para fora, sorrindo sozinha por aqui estar.

Esse tal de Erasmus é tão mais do que um estatuto.

23 janeiro, 2007

Congela tudo, menos o tempo


Cachecol até aos olhos, mãos nos bolsos, saída do aeroporto, sozinha na carruagem de regresso, céu limpo e verde-relva lá fora, bem estendido. Mais uma despedida.
De regresso à rotina, à cantina, aos cadernos já cansados, amarrotados, cheios de conteúdos para decorar e traduzir.
Não sobra tempo para tudo, ou talvez não sobre tempo para nada do que Janeiro, im Allgemeinen, exige. O cheiro a despedida sente-se, cumprimentam-se as temperaturas negativas, anseia-se pela visita da neve.
Faz-se uma contagem decrescente, não para "o" dia, mas para vivências diárias. Aqui não escasseiam as oportunidades para saborear algo novo. Próprias de quem já sente saudades de muitas coisinhas. E entretanto planeiam-se novos passos, nova casa, novo semestre, novas férias, novas cidades.
Estimo a minha rotina. Afinal não interessa nada o vento cortante; cá dentro está sempre quentinho.
Lisboa, querida, está quase-quase.
Mas não tenho pressa nenhuma.

10 janeiro, 2007

Do pedido de prolongamento.




"Cara Débora,

(...)
Neste momento o seu processo está concluído".


Tanne bleibt ein ganzes Jahr.
A Tana fica um ano.

02 janeiro, 2007

Tentando balançar.

Estava tão quente que teve vontade de oferecer às pessoas que via passar do lado de lá do vidro, os queixos enfiados nas golas, o olhar preso ao chão, molhado pela chuva fria. Saboreava-o entre as mãos, deliciada, sem se lembrar de quando passou a preferir aquele café-chá em relação ao café-creme-e-curto.

Depressa percebeu que não é preciso encontrar razões para tudo. Sabia-se ali, uma pessoa apenas no meio de milhares delas, num café no centro de uma metrópole da Europa Central. Há muito tempo que não ouvia a sua língua em redor. Entretinha-se a tentar decifrar a nacionalidade dos que com ela se cruzavam.

Pousou a chávena e voltou a pegar na caneta. Tem nela gravado o mesmo nome da Universidade que escreveu no dia das candidaturas. Nessa altura nunca se teria imaginado ali, no último dia desse mesmo ano, naquele ponto tão longínquo de tudo o que receou deixar.

Virou a página do caderno – por orgulho de ter ultrapassado essa fase ou por medo de relembrar essa época, não sabe ao certo. Mas também tinha aprendido a desligar-se das reflexões em rede, essas que vão dar aleatoriamente a apenas uma de várias conclusões possíveis. Precisava de férias do passado. Agora só lhe apetecia apanhar aviões para o futuro, esse futuro que já vivia ali sem saber, depois de, caneta pendulando entre os dedos, o ter imaginado nos cafés tradicionais daquele país que tanto criticava - e cuja luz hoje lhe trazia lágrimas de saudade frequentes. Então aproximou a caneta da folha, lembrou-se da mágica festa que teria lugar nessa noite em Times Square e, imaginando, escreveu: “Nova Iorque”.

Lá fora os gorros e cachecóis, sob as iluminações de Natal nos postes e nas árvores nuas da cidade, transportavam-na mentalmente para a Big Apple, ou groβer Apfel – não sabia agora qual o nome indicado. Sentia-se uma gotícula no meio de uma série de ruas perpendiculares – e sorriu. Talvez a cidade que nunca dorme tivesse adoptado uma filha chamada Berlin.

Já não tinha a mesma perícia para preparar o futuro e criar expectativas. Aos poucos via-se a pensar apenas em cada dia, sem por isso esquecer tudo o que ficou para trás que a trouxe até ali. Àquele café.

Sabia que não tinham sido tempos fáceis. Ao listar mentalmente tudo o que a tinha preocupado nesse ano, sacudiu a cabeça e voltou a concentrar-se no sabor do café. Ainda não conseguia recordar tudo aquilo, esquecer, acreditar sequer. Tinha simplesmente continuado, com a certeza de que tudo tinha dependido dela. Estava cada vez mais convicta de que só se apercebeu de qualquer coisa – mas nunca tudo – quando aterrou naquela noite, naquele aeroporto loiro, alcatifado, mudo e totalmente baço.

Fechou o caderno. Desta vez não queria relembrar nem planear. Engoliu o último resto de café, levantou-se, vestiu o casaco, enrolou o cachecol ao pescoço, calçou as luvas e saiu para a rua. Depois de tentar identificar as ruas para saber que percurso tomaria para a chegada do novo ano, enfiou o chapéu na cabeça, aconchegou o queixo no cachecol e, olhos postos no chão, seguiu em frente.