20 novembro, 2005

Refúgios


Todos nós sentimos falta de um. Nem que seja por um momento na vida. Esses momentos que os spots e as folhas de imprensa a anunciar telecomunicações mencionam. O fracasso amoroso, a consciência da efemeridade da vida, as indecisões, as grandes decisões, as grandes desilusões. As experiências, os estados de espírito, a alegria, a apatia, a angústia.


A reflexão. Precisamos de refúgios para reflectir. Precisamos de um espaço de isolamento, no seio desta massa de espaços onde ninguém se une. Apesar de tudo ainda resiste a consciência de que temos uma interioridade e uma exterioridade. A interioridade que revela com uma transparência cruel as nossas fraquezas, os nossos pecados, os nossos erros conscientes. Mas só expressamos os orgulhos feridos, as cobranças, os podres de uma essência cada vez mais egoísta.


É permanentemente urgente esse espaço de refúgio onde escondamos todo o nosso cinzento. Mas nem nesse grito interior somos iguais, para sempre criadores e vítimas da discrepância de direitos. Feliz de mim que tenho uma cama onde me deito, acolhida, protegida e quente, onde sussuro ou soluço à minha almofada todas as nuvens carregadas do meu dia. Os que não têm essa almofada - como aqueles que regelam neste preciso instante debaixo da chuva, cujo som hipocritamente me delicia, quente sob o edredão - não dormem quentes, antes adormecem a sonhar com esse momento.


Eu saboreio cada vez mais este prazer pela reflexão, por este egocentrismo que não precisam de me denunciar, porque o descrevo gritantemente para dentro de mim sem pedir a ninguém que o oiça.


Eu agradeço hoje ao Céu por saber que posso correr para este espaço, que é meu, quando eu quiser, durante o tempo que eu quiser, e pedir-lhe que oiça a minha alma.


Hoje, quando me angustio, é aqui que renovo a vontade de sorrir e é aqui que ganho a plenitude que em tão pouco me caracteriza. Quando posso, refugio-me em mim neste refúgio. Ando, caminho, pedalo ou simplesmente páro a sentir o aroma da lenha queimada que sai das chaminés, qual aconchego de um lar que se esvai no ar pesado de Inverno. Nesses momentos, em que o espírito das famílias se mistura com o respirar dos pinheiros e o silêncio da fauna, relembramos a unidade da Natureza, tão mal tratada, mas que ainda assim acolhe os frutos de todas essas casas.


Todos esses fios de fumo têm origem em lares diferentes, em rotinas e pessoas diferentes, mas todos eles sabem que se aliviam justamente na viabilidade da sua união. "Diversidade não é dispersão". Não nos refugiamos por termos um problema grave, mas por termos uma maneira específica de lidar com um problema que é partilhado por tantas outras pessoas, outros indivíduos, transeuntes, vultos que se nos atravessem ou não.


Conheço o alcatrão que piso e acho-o feio. Frio. Sei porém que ele marca o tempo em que existo, este tempo tão estrutural que ninguém domina. É sobre ele que caminho e dele que admiro e devoro a pouco e pouco o luar que se completa ou o sol que se põe, tão longe de onde me posiciono, no meu refúgio, a reparar a sua distância através das ramagens dos pinheiros.


É noite e o céu emite luz. Do meu refúgio vejo as estrelas que a Lisboa que amo não me mostra.


É assim que funciona. Da Lisboa que me constrói, que me apresenta aos outros, que me faz feliz e infeliz, refugio-me para fora dela, para onde possa falar dela para mim, sobre mim e sobre o meu mundo, porque o meu refúgio é só meu. Para ele sou eu quem interessa e ele não interessa a mais ninguém.


Levo para Lisboa o que dele trouxer. Claro.

15 novembro, 2005

Visitem sff!


Não me levem a mal, mas em tempo de crise há que agarrar todas as oportunidades para dar um passeio. Mesmo que não queiram uma viagem à neve para nada, por favor registem-se (é mt rápido) para que eu possa ganhar uns pontinhos e quiçá ganhar a dita!

Obrigada!

04 novembro, 2005

Um olhar para o futuro

Numa esplanada da praia daFonte da Telha, Débora senta-se a fazer uma das coisas de que mais gosta: observar. O fim de tarde ainda luminoso propicia-lhe reflexões sobre o passado e o futuro de uma vida atenta às pequenas coisas.


Ouvem-se gritos entre os membros da família que dirige o bar, a discutir sobre as mesas que falta servir. Rapazes com boné na cabeça atravessam a esplanada a correr, sem nada fazerem para repor no lugar as cadeiras que desarrumam. “É isto que me atrai”, diz esta estudante de Ciências da Comunicação. “Estes pequenos grandes quadros que espelham a sociedade. A pobreza, a ausência de oportunidades educativas que estas pessoas tão bem transparecem. Mas também gosto de me pôr a analisar o Mundo na generalidade, obviamente de forma modesta”.


Débora é uma jovem de vinte anos que tem como objectivo lutar para alcançar um lugar no jornalismo. Acredita que o curso seja um bom passaporte para esta profissão. Daquela espalanada, o horizonte que visualiza fá-la relembrar esse esforço, que persiste desde a infância. “Na altura em que ainda não tinha sequer entrado para a escola primária, dava por mim a riscar com imensa raiva um quadro a giz que os meus pais me tinham dado para desenhar”, conta, remexendo uma caneta entre os dedos. “Queria fervorosamente saber escrever, porque me fascinava a imagem que tinha daquelas linhas com palavras de letras arredondadas”. O gosto pelo prática jornalística não tardou quando, num dia dessa infância, numa viagem de carro por Lisboa em hora de ponta, Débora ouviu o seu pai falar sobre a azáfama que lhe está associada.


O tempo e a experiência rapidamente fizeram com que esta estudante se apercebesse dessa dinâmica de trabalho que a sua aspiração exige. A confrontação permanente com o pai, que hoje a aconselha a procurar oportunidades além-fronteiras, é o seu grande quebra-cabeças: “Com a crise que tem desgastado o nosso país sou obrigada a pensar que mais facilmente tenho sucesso lá fora, mas não me imagino longe das raízes que aqui criei a todos os níveis”, lamenta.


A família que tem e aquela que gostaria de construir um dia, assente numa rotina saudável choca com a sua vontade de contar histórias de vida de pessoas que vivam noutras culturas. Pesa também o facto de ter estudado em colégios católicos durante doze anos, o que incutiu nela um espírito de entrega e de sensibilidade que admite ser um entrave ao espírito aventureiro. “Costumo autodesignar-me de diletante, porque a minha vontade de executar coisas concretas fica apenas pelo papel, na maioria das vezes. Parece que não levo a sério os meus próprios desejos, ou então estou precisamente à espera que o tempo me ensine a «sair da minha concha», como costuma dizer o meu pai”.


É esta luta contra a sua própria resistência que move Débora hoje a tentar efectivar alguns anseios. A blogosfera e a aprendizagem de novas línguas fazem-na sentir-se mais perto do sonho de um dia ver a sua crónica publicada, por exemplo, na revista Única do jornal Expresso. Adorou as duas viagens que fez aos Estados Unidos, uma à Florida, outra a Nova Iorque, pela impressão de imponência que o poder americano provocava no espírito de uma criança em crescimento. Adoraria repeti-las hoje, para então ver tudo com um sentido crítico mais apurado.


Não há nada mais aliciante na vida desta jovem do que olhar para um quadro do seu quotidiano e imaginar como poderia escrever sobre ele. Diz mesmo que é sua frustração não conseguir manter uma conversa com alguém ou meramente passear na rua sem tomar atenção ao modo específico como as coisas e as pessoas se movem. “Adoro ir no metro e descrever mentalmente o passageiro que segue à minha frente, ou apreciar o silêncio de uma carruagem apinhada de gente”, relata, com um brilho entusiástico nos olhos castanhos. “Mas também gostava muito de conseguir quebrar esse silêncio e encher aquelas pessoas de perguntas, de ouvi-las falar das suas vidas, especialmente aqueles que parecem mais sozinhos, como os pedintes. Sei que nunca terei muita coragem para isso. Então habituei-me à ideia de escrever sobre aquilo que observo em silêncio”. Fica a esperança de, um dia, chegando sozinha à América, ter coragem para investigar tudo o que observou na idade da inocência.


Débora vive os seus anos académicos a sonhar com alguma estabilidade na vida incerta que se lhe avizinha. Acorre muitas vezes àquela esplanada para saborear um bom peixe grelhado com a família. Horas depois escreve sobre aquilo que vê: a nacionalidade dos empregados, o grupo de jovens que por ela passa a dizer palavrões em voz alta, o surfista que não olha senão para o mar, as gaivotas que afluem à beira-mar quando os pescadores recolhem as redes cheias de peixe. Sente inveja dessas gaivotas quando olha o horizonte e alimenta aquela vontade de atravessar o Atlântico, para um destino onde possa amadurecer as suas observações. “Queria ser como elas”, suspira a jovem. “Voam por este mar fora à procura de peixe, mas fazem do seu ganha-pão um conhecimento aventureiro do mundo, sem por isso precisarem de se afastar dos seus companheiros...”


Para contrariar esta quimera, é na racionalidade que procura soluções viáveis. Embora ninguém da sua família trabalhe na área da comunicação, Débora considera que a partilha de experiências profissionais não pode deixar de ser uma mais-valia. A irmã arquitecta, o pai engenheiro civil e sobretudo a mãe médica inspiram todos os dias a sua escrita com novas histórias para contar. É com o desejo de escrevê-las fervorosamente antes do fecho da edição do jornal que cresce a cada dia nesta estudante a vontade de dinamizar as suas ideias, para além do simples olhar e do canudo no final do curso – que tantos consideram suficiente para o sucesso profissional.


Assim como observa o mar que se estende diante dela, Débora fica atenta às oportunidades, na esperança de que uma gaivota a acompanhe até um destino onde possa viver do que escreve e então construir uma família feliz.