30 março, 2007

Cheiro a Setembro



Desde que regressou que tudo tem um toque diferente e simultaneamente familiar. Desta vez não partiu sozinha nem a falar inglês, mas já com uma amiga e conversando em alemão. Tão-pouco foi visita à chegada, porque antes de partir de férias para a sua própria Heimatland deixou as suas coisas na nova casa, aquela onde irá passar os 4 meses que fizeram parte daquela difícil decisão de prolongamento.

Também deixou de confirmar sempre se tinha o Semesterticket na carteira, porque agora é mais a bicicleta que a leva onde quer. Ainda hoje comprou um cestinho novo para trazer as compras, agora que o sol já não obriga a que tudo esteja protegido da chuva e da neve.

As compras deixaram de ter o toque da novidade; já não traz o dicionário na mala porque habituou-se aos palavrões que tanto procurava decifrar. Wasser sempre ohne Kohlensäure, que água com gás não é água; ou as Mandarinen que não são tão doces como as Clementinen e cabem sempre na mala para matar a fome-de-bolas-de-berlim. O saco dentro da mala já não esquece, e já enfia tudo lá para dentro com uma eficácia muito mais alemã do que no início. Também já não precisa de procurar o visor que mostra o preço, porque os dois-e-trinta-euros-e-cinco-e-quarenta-centimos-bitte em vez de trinta-e-dois-euros-e-quarenta-e-cinco-centimos-bitte já começaram a entranhar. Se há dúvidas desta vez já sabe perguntar, em vez de arriscar comprar um produto que ajuda a engomar em vez do tira-nódoas que procurava.

Mas sobretudo o caminhar - ou o pedalar - pelas ruas de Leipzig deixou de ser tão explorador para dar lugar às rotinas. Se escolhe o Strassenbahn já aproveita o silêncio do povo alemão para ler um livro - que a língua portuguesa dá muita Saudade. E agora já vai tocar à campainha de alguém se não tem nada de urgente para fazer, porque os Termine às tantas horas no Sprechzeit da Frau-qualquer-coisa já não são tão importantes ou regularmente necessários.

Das palavras essenciais passa agora a ter interesse pela Umgangssprache e põe a Franziska a rir-se quando, para o "é indiferente", lhe sai a expressão "es ist mir Wurst" (que traduzida à letra significa "é-me salsicha").

Rotinas tão alteradas, tão entranhadas e novamente tão saboreadas por aquilo que têm de diferente - em relação a tudo o que em duas décadas de vida foi habituada a experienciar. Repara-o agora. Porque agora volta o Sol a brilhar, exactamente como no dia seguinte à noite tremida em que chegou, da qual parece que só tem flashes de memória, nesse dia em que andou de canoa no rio sem se aperceber que aquele sol era uma raridade e que as pessoas usavam excepcionalmente óculos escuros ao passear com a família no parque. Agora os cheiros voltam a ser mais perceptíveis, porque o calor ameaça. Aqueles rasgos de gás que a todos intrigam, entram agora por aquelas narinas que há 6 meses achavam tudo tão... fremd, tão estrangeiro.

Caminha pela Peterstrasse, já não procura uma esfregona (esse instrumento doméstico tão essencial que os alemães substituem por qualquer outra coisa) e sim um presente de aniversário - para os amigos de Portugal, para os amigos Erasmus, para a Franziska que vive com ela, para os seus Tandems, enfim. E no fim passa no supermercado mais próximo, apanha um Apfelsaft e vai bebendo no caminho - que agora já vai conseguindo conduzir a bicicleta só com uma mão. Quando chegar a casa logo pensa no que lhe apetece jantar hoje e espera que os "Freunde" se "meldem" para ver o que se faz hoje à noite.

E em breve, a areia chegará também a casa, regressará o medo do fim do verão e com ele o medo de um Setembro que novamente se adivinha uma incógnita.

23 março, 2007

Assustadoramente mais que dois meros “mitras”


Nem era fim-de-semana, mas à quinta-feira à noite há movimento nas ruas, apesar da paranóia “Arbeit”. Entrei no eléctrico 7 – uma linha ainda desconhecida mas que me passará a ser familiar – e sentei-me.

Percebi então que o cenário era mesmo de fim-de-semana. O silêncio e as caras carrancudas foram substituídos por rádios portáteis e garrafas de cerveja na mão. Dois rapazes de boné sentavam-se pouco à minha frente e falavam alto. Gritaram “Brost!” para um outro grupo que mais à frente se sentava também com cervejas. Ninguém respondeu e na paragem seguinte o grupo saiu.

Poucos instantes depois, um dos rapazes levantou-se e dirigiu-se ao fim da carruagem, passando por mim, para ir falar com um casal que estava sentado. Estando de costas, só consegui ouvir, não ver. Percebi que o rapaz falava sozinho e os dois, numa atitude universal de não responder a acusações em transportes públicos, ficaram calados. Logo de seguida o outro rapaz de boné levanta-se para ir buscar o amigo de volta para o banco, irritado: “Komm mal hier, Mensch!”…

O instinto foi o de pensar “não precisas ter medo, tu sabes bem que os alemães não se metem com as pessoas assim, e mesmo este bêbedo rapidamente deixou o casal em paz”. Desviei o olhar para a janela a fingir descontracção e tentei perceber o texto do heavy metal que eles ouviam. Em vão, só consegui perceber a palavra “Deutschland”. Mas de repente fez-se luz e tudo ficou assustadoramente claro. Um dos rapazes não fez mais do que gritar “Rechtsvolk!” (povo de direita) e esticar o braço direito para cima. Só então olhei com atenção e reparei que por debaixo dos bonés as cabeças dos dois estavam rapadas.

Estremeci, empalideci, o estômago veio-me à boca. Estava sozinha na carruagem com dois neonazis.

Felizmente não faltou muito até entrarem mais pessoas. Desta vez mais atenta, tentei ver as reacções aos dois rapazes que continuavam a falar alto, a beber e a arrotar e pareceu-me estranhamente que todos sabiam do que se tratava. Ou estão habituados e não há razão para ter medo, ou a famosa frieza deste povo esconde o medo de manifestar emoções.

Ainda assim o ritmo cardíaco continuava acelerado demais para eu relaxar como a senhora ao meu lado, que descascava uma tangerina. A minha paragem nunca mais chegava e o silêncio da noite tornava tudo ainda mais pesado. Imaginei como seria se aqueles dois monstros me abordassem. Em Portugal costumo pensar que se fingir que não falo português, desistem. Mas ali, certamente não seria boa ideia escolher outra língua que não o alemão – e mesmo assim eles perceberiam de imediato que eu era estrangeira. Enfim, melhor seria não imaginar. Eles continuavam a destabilizar, rebentando bombas de mau cheiro dentro da carruagem, atirando pequena pirotecnia pela janela assustando os poucos que pela rua passavam… e lançando gargalhadas a seguir. Tal como nos filmes.

Gerichtsweg. Ainda faltava uma paragem para minha casa mas decidi sair e fazer o resto do caminho a pé. Esperei que as portas estivessem quase a fechar para sair de repente, não fosse apetecer-lhes virem atrás de mim. E saí também pela porta que ficava atrás, não a que ficava à frente, bem perto deles.

Erro meu. Tive de passar, por fora, por essa porta. E antes que tivesse medo da proximidade, dei um salto repentino com outra coisa qualquer que eles tinham voltado a atirar para a rua e que explodiu um metro ao meu lado. Quis insultá-los, mas o pânico calou-me e nem levantei os olhos do chão.

Finalmente o eléctrico seguiu e eu corri para casa. Pela primeira vez tive medo de andar por aqui.

20 março, 2007

Irgendwie, hoje


O dia em que, com grande coragem, pediu uma Bratwurst num quiosque da Henriettenplatz e, ao responder “ja” a uma pergunta que não entendeu direito, ouviu presumíveis menções a sua parca inteligência, seguidas de risadinhas e risadonas dos outros clientes do estabelecimento.

O dia em que, não conhecendo (e não a tendo achado no dicionariozinho) a palavra para designar “sacola”, limitou-se a apontá-la para a caixa do supermercado, a qual ficou imensamente transtornada e começou a discursar… - das ist kein dah-dah-dah-dah! Das ist kein buh-buh-buh-buh! Das iste eine Tüte! Das ist eine Tüüüüte, ja?

Sim, tudo isso é muito natural, não será isso que o desencorajará, um dia ele finalmente aprenderá a diferença entre welches, welche e welchem, um dia saberá pôr um verbo aqui e outro a duas milhas de distância, para isso vem estudando com afinco.

No Brasil, muitas vezes me queixo de que as pessoas falam alto demais,, se olham, se pegam, esfregam, abraçam e beijam demais. Já aqui, sinto uma espécie de privação sensorial. Penso em Montaigne que, se não me engano, escreveu que o casamento é como uma gaiola: o passarinho que está dentro quer sair, o que está fora quer entrar. Acho que isso pode estender-se a tudo na vida, porque hoje, particularmente, eu gostaria de ter voltado para casa com a sensação de que alguém na rua me viu, e fiquei com saudades de casa.

João Ubaldo Ribeiro, Um Brasileiro em Berlim


06 março, 2007

Pendulando


Não sabe exactamente se veio ou se simplesmente chegou. Está de passagem, é como uma turista que não pára de movimentar a cabeça à procura de todos os pormenores. Reflecte mais agora, sem dúvida.

Acorda no seu quarto novo, casa de sempre, os olhos semicerram-se com a demasiada luz que vem de fora. Mesmo com estores e cortinas. Um azul que ilumina a faz sorrir, para o qual poucos olham. É, sem dúvida que agora reflecte mais sobre essas coisas.

A pele está tão branquinha que nem lhe apetece usar óculos de sol. Os raios da Primavera que se anuncia batem devagarinho nas faces que ela tem esperança de ver ficar rosadinhas, como acontece com os loiros de dois metros lá do norte.

Sente-se longe desse “lá” mas em parte ainda lá está.

Eles, coitadinhos, têm pena de não saborear este “em casa” como nós. Estar em casa significa render, trabalhar, para nas férias apanhar o avião para um Portugal-destino-de-sonho. Dizem que sorrimos muito, não somos sérios e carrancudos como eles. Ela, no entanto, acha que muitos deles são mais interessantes do que muitos dos que vê por cá. Só depois de regressar reparou.

Num café, esperou 10 minutos até que uma senhora viesse em passos lentos perguntar-lhe “o que é que quer”. Nem sabe se ela chegou a dizer isso, porque antes disso desistiu e dirigiu-se a outro café. Esperou outros 10 minutos, tentando ser mais paciente, foi atendida mas claro que lhe perguntaram se arranjava os 2 cêntimos. Noutra proporção, é o lema deste país de “faça-me um jeitinho”. Não é como “lá”, não, em que a grupos de 50 pessoas fazem a conta separada para cada uma individualmente, com troco certo.

Lá, como chegou a comentar antes, o estudo leva-se a sério e as pausas para o café são curtas e rentáveis. Pois cá, mal se sentou num café, viu dois jovens sentados a conversar alegremente na companhia de livros de Literatura Contemporânea, ao lado de canetas às cores, do último Nokia, de um Marlboro e de óculos Vogue (a Vogue ainda está na moda?).

Exacto, ela já não se lembrava que era assim.

Também não se lembrava que não é possível ser peão em Lisboa. Encharcou-se nas poças do caminho, desviou-se dos carros estacionados em segunda e terceira fila, em cima do passeio, sem ordem nem hora de regresso.

As buzinas nem são o que mais a incomoda. O que realmente incomoda é o zumbido nos transportes públicos, diga-se, as vozes zangadas e críticas de todas as bocas em seu redor. Sentiu saudades dos alemães caladinhos nos transportes, cuja vida pessoal não precisa de conhecer através das conversas aos telemóveis. (Também recordou a importância extrema do telemóvel neste país cheio de dinheiro para os topos de gama de todas as gamas.) Talvez seja porque lá eles não têm do que se queixar. Um jovem que vive os seus primeiros 27 anos de vida a receber 150 € mensais do Estado simplesmente pelo facto de ser jovem, que paga 50 € semestrais de passe de transporte, que não se desdobra nas despesas de sobrevivência, um jovem que tem café, capuccino, chocolate quente e bolos totalmente de graça só para fazer o favor de se sentar a ler um livro numa livraria – um jovem assim não tem razões para se queixar.

Nem em todo o lado assim, é verdade, há pequenas crises em qualquer país, nós temos sol e eles não. Mas quando ela chega “a casa” e sente este arrastamento de quem só quer uns trocos ao fim do mês ou ambiciona ser despedido para receber um subsídio de desemprego ainda mais em conta; quando ela chega “a casa” e volta a ver a discrepância entre as mãos estendidas no Chiado e os óculos da moda mesmo ao lado; quando ela chega “a casa” em desespero para procurar a cunha que a deixe estagiar de graça num qualquer meio de comunicação podre…

…quando ela chega “a casa” tem vontade de voltar para aquela cidade fofinha e pequenina de onde veio, cinzenta mas com uma chuva menos chata, caladinha mas sem queixas, histérica apenas aos fins-de-semana mas com força de vontade de segunda a sexta…
…é assim mesmo que ela se sente, uma confusão na cabeça, uma perna em Lisboa e outra na Alemanha Oriental, fria, com frio, fachadas lisas, silêncio, ordem, reciclagem.

Está contente por saber que ainda volta, por saber que mais portas serão abertas lá do que cá, por saber que faz parte dos portugueses que querem trabalho e não emprego, que querem produzir e não cumprir horários. Está contente por ter percebido tudo isto em tão pouco tempo, o mesmo tempo em que tudo cá ficou na mesma, as mesmas OPAs, os mesmos sacos azuis, apitos dourados, os mesmos arguidos, as mesmas parasitas a preencher folhas de revistas 90% fotos 10% texto, as mesmas cunhas e os mesmos aumentos dos transportes públicos.

Está contente mas profundamente triste por não poder ficar cá. Cá, numa das cidades mais lindas que já viu, a cidade onde orgulhosamente vive desde que nasceu, a cidade da luz, da calçada portuguesa, das ruas estreitas, das colinas, dos eléctricos, dos estendais, a cidade do Tejo e do Fado.

Sei que vou torturar-me de saudades tuas. Mas desde já me desculpo, Lisboa, por saber que vou ter de viver muito tempo afastada de ti.