19 dezembro, 2005

Um bom título






Depois de catorze horas de sono, esforço-me por lembrar todos os momentos que marcaram os últimos quatro dias. E tal como revelei no artigo de opinião de ontem, na qualidade de “jornalista do MUN Daily News”, a verdade é que me sinto bloqueada quando tento falar na experiência que adquiri a vários níveis.


Quando me foi sugerida a reunião de meia dúzia de pessoas que quisessem colaborar na cobertura jornalística de uma simulação do funcionamento das Nações Unidas, nunca pensei que pudesse vir a viver momentos tão... vivos.


Não é exagero, sinto-me realmente BEM. Pela experiência prática da procura de notícias, estórias, conversas de corredor ou meros acontecimentos de agenda. Pela fuga à FSCH, que ali, na FCT, tanto criticámos. Pela fuga às salas de aula com aulas, pela fuga às folhas de ponto, aos enunciados, aos horários.


Nestes dias, nem me lembro se tive horários. Sei que acordava automaticamente, com vontade para me levantar depois de tão poucas horas de sono, sem aquela desmotivação que, apesar do balanço positivo das experiências apreendidas, caracterizou a generalidade dos dias do semestre académico que agora se prepara para terminar. Ali eu tinha coisas para fazer, tinha produções que dependiam do meu gesto, da minha corrida àquela sala ou àquele auditório, do meu trabalho, da minha escrita, das fotografias da minha máquina.


Tive a oportunidade de ver os meus textozinhos, mesmo que tão literalmente simulados, publicados no jornal “de amanhã”. Os textos que produzi numa também simulada redacção, com os colegas que creio terem sonhado ali tanto quanto eu. O produto não foi real, mas a produção do pequeno sonho decerto tê-lo-á sido, não acham, caros jornalistas do MUN Daily News?


Os alunos engenheiros (no caso, matemáticos) não deram conta do evento, a avaliar pelas vezes em que entraram de rompante na pequena redacção bem como, ao que se sabe, nos formais comités. Tentou-se de tudo: trancar a sala à chave, colocar um aviso na porta, vandalizar o dito aviso com fórmulas matemáticas... e ainda assim eles não compreenderam que ali se reservava um local de trabalho muito peculiar e aparentemente sério.


No primeiro dia, o receio era total, mas o entusiasmo estava lá, camuflado. Ainda ninguém se conhecia bem, nem entre a pequena redacção, nem entre a organização, muito menos entre os diplomatas que discutiam protocolos e resoluções nos diversos comités. Assim o confirmaram as muitas entrevistas, realizadas tão ainda de pé-atrás entre os pequenos “breaks” dos “coffee-breaks”, à procura das primeiras reacções. A primeira edição do recém-formado MUN Daily News saiu consoante o previsto, mas talvez ainda um pouco sem sal. Queríamos mais, mais páginas, mais produção, mais entusiasmo. E assim lutámos por isso, até à uma da manhã na Associação de Estudantes da FCT, depois de expulsos da nossa já acarinhada redacção, que estava apenas reservada para o Portugal MUN até às 19 horas, “só até às 19 horas, só até às 19 horas, só até às 19 horas”. O cansaço acumulado dos trabalhos académicos a entregar até ao final da semana resultou num decréscimo do rendimento que, aliado à inexperiência dos pequenos jornalistas entusiasmados, permitiu a conclusão do jornal apenas à hora que todos sonhávamos já estar a dormir. A colega Sara Biscaia foi a grande resistente ao sono, firmemente agarrada ao seu gravador a escrever entrevistas feitas aos delegados dos vários países.


No dia seguinte, demos conta da importância de cada elemento da pequena redacção, que assim conseguiu reduzir o tempo para a conclusão do jornal, pronto a entregar. Produção em série, um insere, outro fotocopia, outro preenche a requisição de um dos mil aspectos que não precisámos de pagar, outro transporta, outro dobra, outro vinca, outro encaixa, outro empilha... para todos distribuírem. Calhou-me distribuir a edição do MUN Daily News na sala da Cimeira Euromediterrânica, onde o entusiasmo pela recepção do jornal não foi a mais calorosa de todos os comités mas onde senti, em todo o caso, uma enorme sensação de conforto e plenitude. “Aqui está o nosso trabalho ao vosso dispor”. Aliás, não poderíamos provar mais o nosso entusiasmo por este trabalho do que manifestando o enorme agrado pelas reclamações feitas por alguns delegados que se queixavam da deturpação da informação por parte dos jornalistas...


A eclosão de uma crise, no mesmo dia, apurou ainda mais o bichinho do stress que a todos afectou. Uma sugestão para o título, outra para a foto, outra para o pormenor “última hora” e outra pela abordagem (pelos vistos errónea) dos acontecimentos no Sudão e no Uganda fizeram daquela edição especial do MUN Daily News outra grande experiência. “Cada um de nós vai entrar no seu comité de rompante e assim todos os comités receberão a notícia ao mesmo tempo”, propôs a Ana Filipa, também já conquistada pelo stress jornalístico daquele mundo aparte em que vivemos por uns dias. (Sim, porque ontem no Bairro Alto eu e a jornalista Sara Barata julgámos ter visto por uma dezena de vezes o colega fotógrafo, o sr. Delegado da Arábia Saudita e outros por todo o lado...)


Nessa noite, porém, o trabalho acrescido manifestou-se no cansaço de todos os elementos. Apesar do convívio esperado (e até certo ponto concretizado) no jantar-cujo-encontro-do-restaurante-exigiu-tempo-extra-porque-todos-caíram-no-erro-de-acreditar-no-meu-sentido-de-orientação, concluímos que o melhor seria voltarmos para casa e trabalharmos individualmente.


Tomo partido deste momento para partilhar o meu orgulho quando dei por mim, à uma da manhã, no carro, depois de deixar os colegas nas respectivas casas (ou não), descontraidíssima numa visita extra-MUN. Sabia que teria de acordar seis horas depois e, no entanto, aproveitei aquele encontro pessoal ao máximo, acordadíssima, sem olhar para o relógio! Estou a evoluir!


Mas retomando, o dia de sexta-feira começou cedo, pela hora que referi, num movimento já bastante automático de “vou trabalhar, não tenho sono nenhum, toca a levantar esse rabo da cama que experiências estimulantes aguardam por ti”. Nelson Traquina esperava-me para me dar duas boas notícias (literalmente) e para receber de mim mais três trabalhos de produção jornalística: uma reportagem geral cujo balanço é, a meu ver, positivo, dada a boa organização de tarefas; uma reportagem individual que terminei num pequeno intervalo da hora do fecho da edição do jornal-real-de-sonho na tal noite na associação de estudantes (estou definitivamente a evoluir); e uma notícia de agência sobre ataques terroristas de norte a sul de Portugal, enunciada para ter sete parágrafos. Este terceiro trabalho foi sem dúvida o mais interessante. Assim o confirme Mariana Barbosa, a jornalista que se encontrava aproximadamente na mesma situação-de-sono que a minha pessoa. Falámos meia hora antes de olhar para o enunciado, soltando “como se sente?”, “quantos artigos escreveste para hoje?” e “mandaste o mail ao grafitti-man Guilherme?” que denunciavam a exclusividade do nosso interesse para o Portugal MUN a decorrer já do outro lado do rio. E mesmo quando pegámos no dito enunciado, começámos por esboçar na folha de rascunho expressões parecidas com “Federação Russa animada em jantar-convívio” ou “Crise no Sudão prevista para ser solucionada hoje na Assembleia Geral das Nações Unidas”. Mesmo assim, lá nos esforçámos por terminar o trabalho académico, qual responsabilidade que passou a fazer parte de nós, colegas de redacção, para cumprir todos os trabalhos solicitados. Da minha parte, escrevi a notícia tão ansiosamente à pressa que só no momento de passagem para a folha de ponto é que dei conta de ter escrito um parágrafo a mais... mas não há tempo, estamos perante a pirâmide invertida, corta o último e entrega.


Minutos depois já estavamos de partida para a nossa casa daqueles dias, FCT de nome... O cansaço era de facto evidente, a chegada à redacção foi tardia mas mesmo assim não sobrara já energia para ter o jornal pronto à mesma hora do dia anterior. Um café, dois cafés, lá saiu, lá foi lido e criticado pelos vários comités, um almoço às pressas, a inversão dos papéis quando os delegados rodearam os jornalistas a comentar o seu trabalho, mais um café e toca a instalar a cobertura jornalística na Assembleia Geral decorrida no Grande Auditório.


Muitas formalidades, muito trabalho de pesquisa, muitas conversas de corredor, muitas decisões e muitos discursos marcaram aquela interessante tarde em que o vento frio e cortante lá de fora foi abafado pelas acusações diplomáticas dissertadas à mesa em tom irónico e caloroso. Mesmo no coffee-break o trabalho foi activo, da minha parte atirei pela goela mais um café cheio e retomámos a sessão, cuja resolução concluía pouco mais do que o que todos sabiam à partida. Em suma, todos os presentes confirmaram que as formalidades de acontecimentos deste tipo atrasam em muito a aprovação de resoluções, mas nem por isso o empenho de parte a parte deixou de se fazer sentir.


Quando todos os diplomatas foram para casa vestir-se a rigor, os jornalistas permaneceram na redacção-reservada-apenas-até-às-19-horas até mais tarde, qual jornalismo que nunca tem horas. Um motivo de força maior se elevou, no entanto, arrastando todos os redactores para suas casas, vestir-se e pintar-se para estar à hora marcada na discoteca Kapital. Os cafés começavam a fazer efeito e a ânsia pela noite era visível, à procura de grandes acontecimentos para publicar na manhã seguinte.


Apesar de não ter sido esse o caso, porque o esgotamento aproximava-se, a noite foi aproveitada ao máximo. A imparcialidade da qualidade de jornalística terá de ser aqui abandonada, pois só posso revelar a minha opinião pessoal sobre o que ali se passou. No terceiro piso, lembro-me (...) de ter ouvido, finalmente em pista de dança, o excitante new hit da Madonna estilo anos 70 em que os mais tímidos delegados se revelaram. A partir daí, as vodKas Ke Karacterizam o grupo K, Kom vodKa igualmente no gelo, degradaram a minha imagem, impedindo que agora saiba relatar cronologicamente os acontecimentos . Hoje já sei que encontrei amigos extra-MUN, sei que roubei uns cornos de rena a alguém igualmente extra-MUN, , sei que o delegado da Argentina atirou a minha máquina fotográfica ao chão, sei que acusei a maioria dos diplomatas presentes de homossexualidade, sem que manifestei actos lesbianos no meio da pista de dança, sei que não sei de muita coisa, sei que às seis da manhã era a única que não queria saber do horário de trabalho para a manhã seguinte (o que prova novamente a mudança radical que operei nas células organziadas do meu organismo) e sei que nesse momento final aproveitei para retribuir o papel de pendura na boleia do delegado da França que terei conduzido perigosamente à faculdade nessa manhã. Pouco me lembrando do caminho até ao carro, estou agora consciente que arrastei quatro pessoas até uma padaria por minha causa, onde adquiri um pão-com-chouriço que levei meia-hora para acabar de comer. Aos ziguezagues procurei fazer uma expressão calma perante a minha Mãe, que se cruzou comigo, acordada, em casa, e caí redonda na cama depois de marcar o despertador para três horas depois.


O acordar foi o menos automático daqueles dias. Agoniada, a desesperar de sede e tontíssima tomei um banho que não me acordou e dei por mim a dar gargalhadas no carro, antes de apanhar as restantes jornalistas que se riram igualmente quando a troca dos nossos olhares denunciou o mesmo pensamento. Com receio de uma operação STOP que confirmasse a ainda presença de álcool no meu sangue, conduzi cuidadosamente até à FCT pela última vez.


Definitivamente o rendimento era quase nulo. A minha sorte foi ter escrito cinco artigos na noite anterior, com a energia que tinha guardado para a gala. Na manhã de ontem não fiz nada senão ler blogs, falar no MSN e beber água.


Depois de um almoço-buffet que não pôs de lado a qualidade da cantina da faculdade, com a qual a Avenida de Berna deveria aprender, o jornal saiu depois das cinco da tarde, o que só provou o nosso estado. Mesmo assim, a qualidade manteve-se, se esquecermos pormenores como a data da edição anterior que nem sequer foi alterada. O Suplemento “Making Of” captou a maioria das atenções e então percebemos que o trabalho tinha terminado. Na hora do reconhecimento, na sessão de encerramento, cada jornalista foi chamado ao palco para receber um diploma de organização que começou a alimentar o bichinho da nostalgia.


O útlimo coffee-break, mais digno de coffee-end, foi utilizado para as despedidas. Membros da organização despediam-se com abraços, fazendo votos para a realização de um World MUN em Portugal (eu vou!!!). Com os diplomatas parecia haver ainda alguma distanciação, provada com meros votos de Bom Natal.


No carro, a viagem para casa fez-se novamente em piloto automático (posso agora revelar aos meus colegas que foi um risco terem sido conduzidos por mim em tal patamar na escala de cansaço) e, ao chegar a casa, sozinha, senti-me vazia. Deixei de ser jornalista, despi a roupa (já não muito) formal, tirei o crachat que dizia "Press" e, ao contar às pessoas extra-MUN a experiência, percebi que “só quem lá está poderá perceber”. Foi um autêntico reality-show, com direito a regras, hierarquias, algum aprisionamento, muito trabalho, muita diversão e até algumas paixões.


Obrigada pelo fim tão solario que proporcionaram ao meu semestre. Senti-me realmente motivada. Sinto-me realmente feliz.

05 dezembro, 2005

O turbilhão


A cabeça está saturada. Folhas, ecrãs, cores, telemóveis, teclas, livros, mais folhas.

Vejo-me a sorrir, a rir, a dar gargalhadas e a fazer os outros rir. Solto-me, dinamizo-"me" (tão caro!...), telefono, vou, falo, faço. Cheguei ao ponto em que até me esqueço das coisas.

"Gostamos de quem sabe o que quer. Gostamos da vida como ela é." Eu não sei o que quero. Aquela folha, naquele dia, disse-me que o que eu queria não era viável, que era desgastante demais. Naquele dia, aquela viagem ensinou-me que procurar as pequenas coisas é como procurar um tesouro. Perto de todos mas que ninguém abre. Porque não lhe interessa, porque lhe passa ao lado, porque não tem tempo para essas coisas.

O ruído urbano tem deliciado e saturado a minha cabeça. Choca aquele braço encasacado com o meu, a minha mala é empurrada do outro lado, o guarda-chuva ameaça alguns pés. Tocam-se as pessoas com alarme, tocam as buzinas, tocam os telemóveis, toca o alarme de fecho de portas dos transportes. Lá fora ou ali dentro ninguém se toca humanamente e todos soltam o olhar assustado para o acaso dos diferentes que mantêm a mais banal das conversas.

Não gosto de conversar. Nada me sai como eu quero, preciso da minha memorização provocada, observo os outros em excesso. E eu, não faço nada. Digo que fez, digo que não gosto que fez e nada digo para procurar voltar a gostar do que as pessoas dizem ou fazem. As pessoas, essas, sim, são essas que me estão a saturar. E no entanto elas vivem bem, sorriem e até soltam gargalhadas com a reduzida percentagem de espontaneidade que sai da minha boca. Não sou eu que tenho de me sentir saturada. Sei bem quem tem sido saturante aqui.

Revolta-me pensar no que se pensa à nossa volta, porque a cada dia se pensa menos, e quem pensa mais sai prejudicado. Herdei esta obsessão pela concretização, por esta minúcia que, a dado ponto, me enlouquece. E sei, contudo, que não concretizo nada, que penso em demasia no que o outro encasacado fez mal, que me orgulho da minha visão madura, que aponto críticas que sei fundamentar e que no fim da história não me gratificam em nada, porque limito-me a ver o que se passa em meu redor.

Se eu não pensasse tanto, talvez fizesse mais. Frustra saber que faria as coisas certas e não me mexer para fazê-las. Frustra demais. Entristece, enlouquece. Satura.

Preciso de parar. As minhas folhas e o som de uma qualquer máquina obrigam-me a parar de pensar, este pensar que hoje já é fazer, é fazer ouvir o que penso. Mas já é tarde, a cabeça pesa, fazer agora é desgastante. Pensar, tudo bem. Isso não sai assim de mim.

São mais folhas que me esperam. E muito mais do que folhas.

20 novembro, 2005

Refúgios


Todos nós sentimos falta de um. Nem que seja por um momento na vida. Esses momentos que os spots e as folhas de imprensa a anunciar telecomunicações mencionam. O fracasso amoroso, a consciência da efemeridade da vida, as indecisões, as grandes decisões, as grandes desilusões. As experiências, os estados de espírito, a alegria, a apatia, a angústia.


A reflexão. Precisamos de refúgios para reflectir. Precisamos de um espaço de isolamento, no seio desta massa de espaços onde ninguém se une. Apesar de tudo ainda resiste a consciência de que temos uma interioridade e uma exterioridade. A interioridade que revela com uma transparência cruel as nossas fraquezas, os nossos pecados, os nossos erros conscientes. Mas só expressamos os orgulhos feridos, as cobranças, os podres de uma essência cada vez mais egoísta.


É permanentemente urgente esse espaço de refúgio onde escondamos todo o nosso cinzento. Mas nem nesse grito interior somos iguais, para sempre criadores e vítimas da discrepância de direitos. Feliz de mim que tenho uma cama onde me deito, acolhida, protegida e quente, onde sussuro ou soluço à minha almofada todas as nuvens carregadas do meu dia. Os que não têm essa almofada - como aqueles que regelam neste preciso instante debaixo da chuva, cujo som hipocritamente me delicia, quente sob o edredão - não dormem quentes, antes adormecem a sonhar com esse momento.


Eu saboreio cada vez mais este prazer pela reflexão, por este egocentrismo que não precisam de me denunciar, porque o descrevo gritantemente para dentro de mim sem pedir a ninguém que o oiça.


Eu agradeço hoje ao Céu por saber que posso correr para este espaço, que é meu, quando eu quiser, durante o tempo que eu quiser, e pedir-lhe que oiça a minha alma.


Hoje, quando me angustio, é aqui que renovo a vontade de sorrir e é aqui que ganho a plenitude que em tão pouco me caracteriza. Quando posso, refugio-me em mim neste refúgio. Ando, caminho, pedalo ou simplesmente páro a sentir o aroma da lenha queimada que sai das chaminés, qual aconchego de um lar que se esvai no ar pesado de Inverno. Nesses momentos, em que o espírito das famílias se mistura com o respirar dos pinheiros e o silêncio da fauna, relembramos a unidade da Natureza, tão mal tratada, mas que ainda assim acolhe os frutos de todas essas casas.


Todos esses fios de fumo têm origem em lares diferentes, em rotinas e pessoas diferentes, mas todos eles sabem que se aliviam justamente na viabilidade da sua união. "Diversidade não é dispersão". Não nos refugiamos por termos um problema grave, mas por termos uma maneira específica de lidar com um problema que é partilhado por tantas outras pessoas, outros indivíduos, transeuntes, vultos que se nos atravessem ou não.


Conheço o alcatrão que piso e acho-o feio. Frio. Sei porém que ele marca o tempo em que existo, este tempo tão estrutural que ninguém domina. É sobre ele que caminho e dele que admiro e devoro a pouco e pouco o luar que se completa ou o sol que se põe, tão longe de onde me posiciono, no meu refúgio, a reparar a sua distância através das ramagens dos pinheiros.


É noite e o céu emite luz. Do meu refúgio vejo as estrelas que a Lisboa que amo não me mostra.


É assim que funciona. Da Lisboa que me constrói, que me apresenta aos outros, que me faz feliz e infeliz, refugio-me para fora dela, para onde possa falar dela para mim, sobre mim e sobre o meu mundo, porque o meu refúgio é só meu. Para ele sou eu quem interessa e ele não interessa a mais ninguém.


Levo para Lisboa o que dele trouxer. Claro.

15 novembro, 2005

Visitem sff!


Não me levem a mal, mas em tempo de crise há que agarrar todas as oportunidades para dar um passeio. Mesmo que não queiram uma viagem à neve para nada, por favor registem-se (é mt rápido) para que eu possa ganhar uns pontinhos e quiçá ganhar a dita!

Obrigada!

04 novembro, 2005

Um olhar para o futuro

Numa esplanada da praia daFonte da Telha, Débora senta-se a fazer uma das coisas de que mais gosta: observar. O fim de tarde ainda luminoso propicia-lhe reflexões sobre o passado e o futuro de uma vida atenta às pequenas coisas.


Ouvem-se gritos entre os membros da família que dirige o bar, a discutir sobre as mesas que falta servir. Rapazes com boné na cabeça atravessam a esplanada a correr, sem nada fazerem para repor no lugar as cadeiras que desarrumam. “É isto que me atrai”, diz esta estudante de Ciências da Comunicação. “Estes pequenos grandes quadros que espelham a sociedade. A pobreza, a ausência de oportunidades educativas que estas pessoas tão bem transparecem. Mas também gosto de me pôr a analisar o Mundo na generalidade, obviamente de forma modesta”.


Débora é uma jovem de vinte anos que tem como objectivo lutar para alcançar um lugar no jornalismo. Acredita que o curso seja um bom passaporte para esta profissão. Daquela espalanada, o horizonte que visualiza fá-la relembrar esse esforço, que persiste desde a infância. “Na altura em que ainda não tinha sequer entrado para a escola primária, dava por mim a riscar com imensa raiva um quadro a giz que os meus pais me tinham dado para desenhar”, conta, remexendo uma caneta entre os dedos. “Queria fervorosamente saber escrever, porque me fascinava a imagem que tinha daquelas linhas com palavras de letras arredondadas”. O gosto pelo prática jornalística não tardou quando, num dia dessa infância, numa viagem de carro por Lisboa em hora de ponta, Débora ouviu o seu pai falar sobre a azáfama que lhe está associada.


O tempo e a experiência rapidamente fizeram com que esta estudante se apercebesse dessa dinâmica de trabalho que a sua aspiração exige. A confrontação permanente com o pai, que hoje a aconselha a procurar oportunidades além-fronteiras, é o seu grande quebra-cabeças: “Com a crise que tem desgastado o nosso país sou obrigada a pensar que mais facilmente tenho sucesso lá fora, mas não me imagino longe das raízes que aqui criei a todos os níveis”, lamenta.


A família que tem e aquela que gostaria de construir um dia, assente numa rotina saudável choca com a sua vontade de contar histórias de vida de pessoas que vivam noutras culturas. Pesa também o facto de ter estudado em colégios católicos durante doze anos, o que incutiu nela um espírito de entrega e de sensibilidade que admite ser um entrave ao espírito aventureiro. “Costumo autodesignar-me de diletante, porque a minha vontade de executar coisas concretas fica apenas pelo papel, na maioria das vezes. Parece que não levo a sério os meus próprios desejos, ou então estou precisamente à espera que o tempo me ensine a «sair da minha concha», como costuma dizer o meu pai”.


É esta luta contra a sua própria resistência que move Débora hoje a tentar efectivar alguns anseios. A blogosfera e a aprendizagem de novas línguas fazem-na sentir-se mais perto do sonho de um dia ver a sua crónica publicada, por exemplo, na revista Única do jornal Expresso. Adorou as duas viagens que fez aos Estados Unidos, uma à Florida, outra a Nova Iorque, pela impressão de imponência que o poder americano provocava no espírito de uma criança em crescimento. Adoraria repeti-las hoje, para então ver tudo com um sentido crítico mais apurado.


Não há nada mais aliciante na vida desta jovem do que olhar para um quadro do seu quotidiano e imaginar como poderia escrever sobre ele. Diz mesmo que é sua frustração não conseguir manter uma conversa com alguém ou meramente passear na rua sem tomar atenção ao modo específico como as coisas e as pessoas se movem. “Adoro ir no metro e descrever mentalmente o passageiro que segue à minha frente, ou apreciar o silêncio de uma carruagem apinhada de gente”, relata, com um brilho entusiástico nos olhos castanhos. “Mas também gostava muito de conseguir quebrar esse silêncio e encher aquelas pessoas de perguntas, de ouvi-las falar das suas vidas, especialmente aqueles que parecem mais sozinhos, como os pedintes. Sei que nunca terei muita coragem para isso. Então habituei-me à ideia de escrever sobre aquilo que observo em silêncio”. Fica a esperança de, um dia, chegando sozinha à América, ter coragem para investigar tudo o que observou na idade da inocência.


Débora vive os seus anos académicos a sonhar com alguma estabilidade na vida incerta que se lhe avizinha. Acorre muitas vezes àquela esplanada para saborear um bom peixe grelhado com a família. Horas depois escreve sobre aquilo que vê: a nacionalidade dos empregados, o grupo de jovens que por ela passa a dizer palavrões em voz alta, o surfista que não olha senão para o mar, as gaivotas que afluem à beira-mar quando os pescadores recolhem as redes cheias de peixe. Sente inveja dessas gaivotas quando olha o horizonte e alimenta aquela vontade de atravessar o Atlântico, para um destino onde possa amadurecer as suas observações. “Queria ser como elas”, suspira a jovem. “Voam por este mar fora à procura de peixe, mas fazem do seu ganha-pão um conhecimento aventureiro do mundo, sem por isso precisarem de se afastar dos seus companheiros...”


Para contrariar esta quimera, é na racionalidade que procura soluções viáveis. Embora ninguém da sua família trabalhe na área da comunicação, Débora considera que a partilha de experiências profissionais não pode deixar de ser uma mais-valia. A irmã arquitecta, o pai engenheiro civil e sobretudo a mãe médica inspiram todos os dias a sua escrita com novas histórias para contar. É com o desejo de escrevê-las fervorosamente antes do fecho da edição do jornal que cresce a cada dia nesta estudante a vontade de dinamizar as suas ideias, para além do simples olhar e do canudo no final do curso – que tantos consideram suficiente para o sucesso profissional.


Assim como observa o mar que se estende diante dela, Débora fica atenta às oportunidades, na esperança de que uma gaivota a acompanhe até um destino onde possa viver do que escreve e então construir uma família feliz.

30 outubro, 2005

O fim do mundo

« Uma mulher discute com a amiga uma conversa entrecortada de apóstrofes e outras indignações.
(...)
Ninguém, na azáfama do regresso a casa, parece preocupado com os magnos problemas da filosofia e da religião, quem sou, para onde vou e o que faço aqui.
(...)
Não seria bom pararmos para nos interrogarmos, não agora pelo menos, quando o 38 está a chegar (...).
(...)
E o mundo sentado na sua poltrona fica a saber das duzentas, ou quatrocentas, ou seiscentas crianças que o terramoto apanhou dentro de uma escola.
(...)
E o mundo fica a saber (...) do tsunami, da explosão, do carro armadilhado, do inocente assassinado, da onda de choque, da derrocada, da multidão desenfreada.
(...)
Não é o que se sofre e como se sofre, é o quanto se sofre.
(...)
A guerra do Iraque podia ser narrada assim, em números diários atirados para o rodapé dos telejornais.
(...)
Como se cada cadáver que se juntasse à notícia lhe conferisse uma qualidade especial, e nos poupasse a nós, os felizes que deambulamos no anonimato da estatística.
(...)
Os sobreviventes não nos interessam.
(...)
A vida segue igual até ao fim do mundo. »
Clara Ferreira Alves

18 outubro, 2005

Sorriso procura-se


Nunca mais o vi.

Não sei porque me arrasto desta forma há tanto tempo. Há mais de um mês que os meus pés transbordam da cama. Não quero ouvir, não quero ouvir repetir, não quero ver o que via há tão pouco tempo. Desnecessito dessa euforia, desse rescaldo de férias para os próprios amigos. Nem sequer me apetece perguntar. Não me apetece ouvir, contar, ouvir, contar, criticar, rir, conversar. Nem dialogar, nem conviver. Não quero um café relaxante, muito menos uma música estridente a tirar-me a noite de sono tranquilo. Na minha cama, nos meus lençóis, na minha almofada só minha.

Mas nem isso me deixam fazer. Tenho de me levantar todos os dias quando ainda converso com a minha almofada. (Até isso eu deixo a meio). Arrasto-me novamente para essa regra, esse curso de regras, este percurso que não me ensina as regras para aguentá-lo e sobretudo esta regra tão minha de não conseguir, de não acreditar, de não saber fazer mais. De não sorrir.

Desmotivo. Com tudo, com toda a gente, comigo mesma. Não me apetece ouvir-me, então calo-me. Não me apetece sequer ouvir o ecoar dos meus pensamentos dentro de mim, então olho para baixo e choro. Como se o soluçar abafasse o que penso. Parece que eu já nem penso em nada, que deixei de raciocinar. Todas as minhas ideias ficam pela metade, ou são turvas demais para que alguém as entenda. Libertar esta minha ampla frustração resulta sempre num desabafo pobre, durante uma conversa inoportuna. Então as ideias apodrecem e no dia seguinte já não me lembro de onde vieram.

Corro e salto desenfreada. Eu esforço-me, sei que me esforço. É incrível como nem a desmotivação me deixa ser desorganizada, tal é o pânico de me perder de vez. Talvez deva ver isso como uma contra-atitude, como a vontade de transpirar todas os pensamentos apodrecidos. Cinzentos e feitos cinza. Mas parece que nem isso resulta, porque logo depois esfrego a pele, deixo-me encharcar e fecho os olhos em busca de uma nova ideia, mais colorida e... possível. A desmotivação impede-me. Baixo novamente a cabeça e as lágrimas misturam-se com a água. Vivo na ilusão de as disfarçar, mas o doce é o oposto do salgado...

Não quero falar sobre isto. Outrora senti saudade daquela conversa confidencial, mas hoje, agora, não me serviria de nada. Deixei de saber falar espontaneamente. Os pensamentos correm mas a neblina desta alma confusa não os deixa passar para a voz, esta voz trémula e insegura. Esta alma fria que aproveita o vento invernoso para se esconder ainda mais, sob o casaco e o guarda-chuva. Esta alma que corre na esperança de avivar o ânimo quando sente o aroma das castanhas assadas... e que abranda, frustrada, quando esse empurrão se desvanece, assim, num segundo. Sem saber porquê.

E no entanto falo aqui. Falo aqui à mercê de todos os olhos do mundo que entendam este dialecto - responsável por tantas das minhas dúvidas. Não quero que vejam esta fraqueza tão exposta, mas quero lá saber, este clic é a hipótese mais próxima que tenho de me obrigar a levar alguma coisa até ao fim. Se quem eu não queria que lesse, ler, paciência. Talvez essa libertação sirva de bofetada para esta birra cinzenta, muda e sem motivo. Digo a todos que sim, estou "assim", ou melhor não estou, não contem comigo na vossa animação. Não sei acreditar, não encontro essa estima pessoal nem o estímulo para esse encontro. Não sei como aprender, não apreendo nada do que me ensinam, não consigo mais dizer o que penso e parece que já não há palavras que me convençam de que presto. Não consigo responder ao "que tens?", pois não tenho nada. Pelo contrário, falta-me. Falta-me vivacidade, clareza, ego, vontade, coragem, talento, alegria.

Falta-me um sorriso. Que não sei onde está nem vou procurar. Não me apetece.

14 outubro, 2005

Canoa...


Já aconteceu há vários dias e a magia do momento desvanece com o tempo, mas não quis atirar fora esta réstia de sensibilidade inspiradora.
Carlos do Carmo com a Orquestra Metropolitana de Lisboa no Coliseu dos Recreios.

Não sou especialista em Fado, nem sequer posso dizer que o conheço bem. Sei porém que é para ser ouvido em silêncio, como diz o ditado, e sem acompanhamento de palmas. Assim o defendeu orgulhosamente o próprio Carlos do Carmo, direccionando as palmas para a música popular.
Não sei cantar nem tocar um instrumento com um mínimo de mestria, mas acredito que o requisito de concentração delicada para ambas as práticas é com certeza abalado pelas fortes e especturadas tossidelas portuguesas que fazem estremecer o Coliseu a cada dois minutos.
Não posso dizer que aqueles fados me preencheram tanto como preencheram o anfitrião com 42 anos de carreira. Nem sequer como preencheram aos senhores que, na plateia, absorviam aqueles poemas como quem revive mentalmente os anos que deixou para trás.
Não sou mais do que uma mera jovem que teve a oportunidade de assistir àquele concerto, de tentar dar atenção à minúcia de todo um trabalho de orquestra, de não esquecer que cada músico transporta uma parte de si para aquela melodia penetrante.
Sei apenas que me deleitou essa melodia, que apreciei como pude, modesta e leigamente. Sorri por esse deleite; por apreciar tão sem esforço algo que tem no meu país uma raiz tão vincada. Deliciei-me com as entrelinhas cantadas à minha cidade, não como menina e moça mas como fonte inspiradora com tanto a contemplar.

Carlos do Carmo fez-me renovar o ar nos pulmões, lembrou-me do que era sorrir com sentimento, despertou-me a audição para tudo o que nos oferece ensinamentos disfarçadamente. Não cantando "Os putos", relembrou-me que muitos caprichos nesta vida não são para ser satisfeitos.

Que quando morre uma andorinha, não acaba a Primavera...

27 setembro, 2005

O baloiço

Hoje fui ao Parque da Serafina.

Uma manhã de terça-feira em Monsanto faz adivinhar a reduzida quantidade de pessoas, e acredito que só assim me sentiria inspirada. Inspirada por um ar puro vindo do pulmão desta linda cidade, não, não é o Central Park de Nova Iorque nem o Ibirapuera de São Paulo, mas é igualmente um espaço verde como tão poucos e tão pouco estimados aos quais temos acesso.

Mais do que respirar aquele ar fresco, senti um arrepio nostálgico a invadir-me os poros ao lembrar a infância que deixei para trás. Lembro-me de ter festejado lá um aniversário, daqueles em que a vela do bolo tinha um só algarismo, de ter juntado os meus amigos do Externato (sempre o Externato!...), de ter sentido a atenção dos meus Pais quando o perigo dos brinquedos ameaçava. Lembro-me da minha prima Rita, que ainda não era brasileira, a cair no lago que separava a pequena casinha do pequeno barco para piquenique. A sentir-se envergonhada em frente aos meus amigos tão mais velhos do que ela, julgávamos.

Hoje percorri o labirinto com paredes feitas em troncos de madeira e reparei que em menos de cinco segundos cheguei ao centro. Era tão bom quando as coisas nos pareciam maiores, é tão propício à reflexão reparar que hoje o tamanho daquele labirinto me pareceu minúsculo. Olhei de relance para as cabanas piramidais dos índios e lembrei-me do receio com que antes as observava, de longe. Não me imaginava longe do alcance do olhar preocupado da minha Mãe.

Bebi água num daqueles bebedouros que antes a jorravam a tempo e inteiro e que hoje pedem a abertura da torneira. "Antes", sim, quando mais gente enchia aquele parque e quando não se ouvia falar em seca e escassez de água. "Antes" também quando eu não sabia o que era a pedofilia, tendo pensado que ela surgiu quando me ensinaram o que significava.

O baloiço cor-de-rosa foi o que me trouxe mais saudade. Sentei-me naquele pequeno pedaço de madeira que parecia tão grande na altura em que vestia saias de pregas e meias arregaçadas. Baloicei e revivi a sensação de o fazer naquele Externato, confrontando as minhas amigas a voar mais alto.

Hoje senti que já voei. Já voei dessa tenra idade em que comia bolo de côco por quarenta escudos, depois da oração da manhã com a Ester. Já não uso a bata preta com o cinto encarnado nem escrevo em diários perfumados quando chego a casa. Já não guardo os dentes de leite que outrora escondi atrás da porta à espera que a fada lá deixasse uma surpresa. Não corro desenfreada para a porta quando vejo o meu Pai a chegar do trabalho, refilando por ele demorar tanto tempo a voltar dos "tostões". Porque hoje substituo a corrida das pernas de uma criança por um pensamento que corre aflito, à procura da confirmação do bem-estar daqueles que olharam por mim quando o perigo espreitou.

Sentei-me nos bancos da zona vazia de refeições, à sombra do cantar dos pássaros, e tive pena de não ter tido consciência alguma de tudo aquilo quando vivi in loco a minha infância. Bom, talvez resida aí a sua magia. No viver sem pensar, no viver quando alguém pensa por nós. Por isso mesmo não adianta avisar os mais gaiatos que aproveitem bem a sua idade. Eles não saberiam como fazê-lo.

A saudade aperta. Saudade de rir com inocência. De andar de baloiço. De ser criança.

15 setembro, 2005

PORTA - GATE



Hoje fui ao aeroporto. Há muito tempo, porém, que não viajo de avião. Força das circunstâncias. Acompanhei a amiga na partida para a Bélgica, onde irá morar no período de Erasmus (sim, desta vez fui). Como sempre, não consegui deixar de... olhar.

Vi jovens com mochilas grandes, prontos para dormir em tendas onde o espírito os leva. Vi outros jovens sem esse aparato, antes uns ténis e um boné fashion para passar uns dias antes da rentrée na rotina social-escolar. Vi um senhor gordo a beber cerveja e a fumar cigarrilha enquanto lia o jornal. Eram oito da manhã. Vi emigrantes, ou imigrantes, de origens e destinos que desconheço, por aquilo a que me pouparam. Vão e vêm, alguns familiares e amigos vão também, outros ficam. Talvez procurem a terra saudosa, ou vão em busca de uma outra oportunidade, ou talvez sigam o rumo que a vida desgastada lhes foi impondo, sem lhes dar tempo de pensarem nela. Vi ricos e pobres que partiriam para lugares tão diferentes neste mundo que piso.

Tive pena. Em nome da amiga que me fez visitar o aeroporto hoje, não utilizarei o vocábulo "inveja", mas a verdade é que queria ser como aquelas pessoas. Partir com agenda vazia, ou não; com planos, ou não; com data para voltar, ou não. Queria simplesmente ir. "Aterrar e sentir o cheiro de um país diferente, e logo tentar comunicar com outra cultura numa língua que não é a minha".

Precisava de consegui-lo.

É das coisas que mais estranho na minha essência. Este desejo tão forte de mudar algo em mim e não conseguir. Erasmus... seria um bom (primeiro) passo. Devia ir. Quero ir. Mas não sei se consigo.

Talvez tenha coragem, um dia. Afinal, "não tem como não ser enriquecedor". Mas por enquanto não. Por enquanto posso ir visitando o aeroporto com fins diversos: acompanhar, esperar, trabalhar, estudar. Com a frequência pode ser que me sinta tentada a ser acompanhada até lá, para partir sozinha e ser esperada um longo período de tempo depois. Nesse dia, teria tanto para contar. O tanto que se acumula dia após dia que vivo neste mesmo espaço.

É este diletantismo que sempre me vence.

10 setembro, 2005

Espírito Salesiano


Tenho pouco a dizer. Julgo ser unânime, aos aqui presentes e aos que a fotografia casualmente não apanhou, que o espírito nela envolvente alimenta-se de um complexo sentimento de empatia [;)]. Não digo o grupo deste ou daquele jantar, não digo o grupo do poker, nem o que se juntou aqui naquela data, nem tão pouco o 12º4. Refiro-me sim a todos aqueles que sabem do que estou a falar. A seriedade numa conversa a dois, as gargalhadas numa noite de convívio, as conversas maduras que conseguimos manter... tudo isso faz-me estimar cada vez mais este grupinho de pessoas que não sei que número perfaz, precisamente porque é na paz que o caracteriza que aprendi a gostar dele. A espontaneidade das conversas, a consolidação das amizades por meio de pequenos encontros, o interesse em estar, onde quer que seja, com estas pessoas. Por fim, sim, creio que esse espírito se deve à casa Salesiana. Há qualquer coisa que aquelas paredes incutiram em mim que me faz hoje ter orgulho de me ter mantido perto de vocês. Porque esta proximidade dá-me a segurança quanto aos amigos que tenho e com os quais sei que posso contar.
Obrigada a todos e, hoje, em particular, à Maria João... vais embora, mas não tenho pena nem medo, pois tenho a certeza que esta saudade que se adivinha se transformará em força, regada pela água do Inverno.
Gosto muito de vocês (sai o cliché... "que sabem quem são").

31 agosto, 2005

De repente...



Aqui está um dos cenários de uma das minhas paragens nestas férias. Uma praia, um descanso, uma sensação de bem-estar. Fui atrás desta imagem quando parti para o Algarve. Estávamos a 30 de Julho. Apanhei sozinha o Expresso com destino a Lagos, uma mala cheia de roupa e sapatos que me enchia de um entusiasmo fútil pelas saídas à noite, pela praia e, claro, pela companhia, não fosse eu ter ido para casa de uma (já muito) amiga. Excitação, sentia eu, vou de férias, finalmente me vejo de novo num autocarro, por minha conta, a caminho de um lugar para o qual fui convidada ou que me suscitou interesse em conhecer. Não tenho dúvidas que é uma sensação diferente daquela que invade, por exemplo, os meus colegas de faculdade que têm de andar naqueles autocarros todos os fins-de-semana para verem a família e o verdadeiro quarto, felizmente tenho a sorte de manter os meus caprichos enquanto estudante universitária filhinha-do-papá-e-da-mamã. Ali foi diferente, lembrei-me das viagens que fiz para norte e sul noutros verões, à procura de dias de puro divertimento.
Eis que me envergonho de tudo aquilo. Já devia ter aprendido. Cerca de meia hora antes de chegar a Portimão, algo pesado aconteceu naquele espaço de poucos metros cúbicos onde se juntava gente desconhecida. Um passageiro bem perto de mim sentiu-se mal. Era um senhor negro, com os seus quase 30 anos, pensei eu, que vieram a revelar-se 40, era alto e muito magro, tinha uma expressão de criança inocente e um algodão com ligadura colado a um dos lados do pescoço, que a camisa aos quadrados deixava visível. Reparei nele logo à entrada do autocarro, quando o motorista o repreendeu, impaciente, por alguma coisa relacionada com o bilhete e ele foi para o fim da fila com ar resignado.
O senhor foi ao WC, pediu água a uma senhora e, já no seu lugar, começou a contorcer-se. Achando estranho e já muito assustada, olhei para ele e entrei em pânico com os seus olhos muito abertos, um encarnado de aflição afundado naquele branco que ostentava dor. Fiquei estupefacta, não sabia como reagir àquele olhar que pedia socorro, queria fugir dali, envergonhada com a minha roupa condizente e os meus óculos escuros de marca por trás dos quais olhava para ele sem reagir, sem ajudar, suspirando hipocritamente quando ele desviava o olhar para se contorcer novamente no banco, de repente caiu naquele mísero espaço que o separava do banco da frente, esticando-se na esperança vã de encontrar algum alívio. Mas não.
Aliviei-me eu quando uma senhora, que se sentava no banco atrás do dele, finalmente tomou uma atitude, uma senhora que dali, longe, me fez sentir duas bofetadas em cada face para acordar. Por instantes lembrei-me dos jornalistas, tão próximos de cenários tão dramáticos e perigosos mas tão distantes por detrás dos seus microfones e câmeras em rec. Mesmo assim o que eu sentia era diferente, era mais humano, simplesmente egoísta, por ficar obcecada com o cenário e essa obsessão me ter impedido de ajudar o pobre senhor. Uma ajuda que começou, finalmente, com a dita mulher. "O que é que o senhor sente?", repetiu tantas vezes quantas as que ele não respondeu, não por não ouvir, mas por não conseguir falar, ele agonizava, rebolava, irrequieto, até por fim se deitar no corredor central do autocarro, fixando aqueles olhos arregalados no tecto como quem pede ajuda ao Céu. Em pouco tempo todo o autocarro se apercebeu do que se passava e alguém - que não eu - foi avisar o motorista que um senhor estava a sentir-se mal. Obviamente não olhou para a imagem dele, ali estendido no chão, senão não teria resmungado "já estamos quase em Portimão". Aqueles minutos pareciam uma eternidade, de repente toda a gente ofereceu as suas garrafas de água e os seus pacotes de açúcar, inclusive a senhora simpaticíssima que ia sentada ao meu lado, perguntando-me informações sobre o senhor, já que eu o via melhor. No meio daquelas pessoas que costumam ser tão mal-encaradas eu passei a viagem toda, até àquele instante, animada por finalmente um dia ter ficado ao meu lado uma senhora de idade que até perguntou se eu era servida da sua tangerina. Mais, lia a revista VISÃO e não a Maria, o que me fez perceber que não devia ser tão generalista. Voltando ao senhor, depois de ingerir um ou dois pacotes de açúcar levantou o tronco e tentou acalmar-se, seguindo a sugestão de um outro senhor que se prontificara a ajudá-lo, de cócoras em frente a ele. Mas era difícil. O senhor começou a chorar, desesperado, emitindo uns grunhidos que ninguém entendia, enquanto o outro de cócoras agarrou nele e o tranquilizou. Sim, tocou-lhe, sem preconceitos, como quem enfiava nova bofetada em cada passageiro daquele autocarro, incluindo eu. Caramba, eu não sou preoconceituosa, desde que vi o senhor a entrar no autocarro que ele me prendera a atenção, querido, inocente, frágil. Quis lá saber da cor da pele dele. Não quis, mas quis, não sei, sei que não me mexi. Quem eu acho que teve uma atitude manifestamente preconceituosa foi uma senhora, loira, bonita, vistosa, inglesa, a comentar, no meio da azáfama que de repente se instalou num único autocarro, "I'm a doctor, and this man is really sick", olhando para ele de cima. Abafei a minha surpresa por a senhora não se ter aproximado dele mais de um metro, pensando simplesmente que a postura dos médicos lá da terra dela podem ser diferentes, ou ainda que a única solução que ela julgara sensata seria não fazer nada até pararmos algures.
À entrada de Portimão passámos a 50 metros do Hospital, mas o motorista naturalmente não quis parar, o posto de bombeiros fazia mais caminho para o terminal. Comecei a achar que os comentários que se ouviam acerca de já se ter chamado o INEM eram falsos, pelos vistos todos foram como eu e ninguém se lembrou de usar o seu telemóvel para ligar o 112, garantindo assim que a aflição daquele homem não duraria muito mais tempo. Sei que de repente vi cinco bombeiros a entrar no autocarro pela porta traseira, a expressão de heróis-da-Tvi estampada no rosto. "Então diga-nos lá o que é que o senhor sente", disse-lhe um, com ar de desdém, um rubor crescente de raiva a apoderar-se de mim, mas claro que nem quando tenho razão salto da casca. O pobre homem, cada vez pior, já de tronco nu a exibir a magreza e uma outra ligadura, desta feita no peito, nem conseguiu responder, só queria que a dor lhe passasse, não sabendo onde nem como isso seria possível. O bombeiro, com um sorriso subtil de orgulho por todo o autocarro olhar para ele, tirou muito calmamente a caixa de primeiros-socorros de cima do pequeno WC, retirou um copo de plástico para café, colocou água, desfez nele mais um pacote de açúcar e ficou mexer durante eternos segundos. "O senhor é médico? Sabe o que está a fazer?", perguntou uma rapariga da minha idade, sentada à minha frente, indignada. "Sou bombeiro", respondeu ele, com o sorriso ainda mais visível de tanto orgulho. Continuou, dirigindo-se ao doente: "Beba isto, vai se sentir melhor". O doente bebeu com a expressão clara de quem já faria tudo o que lhe pedissem, desde que o tirassem dali, afinal, já tinha ingerido três pacotes de açúcar sem ninguém saber o que ele tinha, podia ter a patologia com o nome mais complicado relacionado com excesso de açúcar no sangue ou coisa parecida, mas para aquele bombeiro e para muitos ali presentes o senhor estava apenas com uma "quebra de tensão". Entretanto, quando lá ajudaram o senhor a sair - ou arrastar-se - do autocarro para que esperasse pela ambulância e pudéssemos seguir viagem, a agitação instalou-se lá fora, tendo a médica inglesa estado presente para retirar algumas informações. Cá dentro, onde eu permanecia estática e muda, a primeira mulher que ajudara o homem comentava agora, eufórica e em tom estridente-estilo-peixaria: "não bastava terem entrado aqui 5 bombeiros que não percebem nada do assunto ver o homem e assustá-lo mais, ainda tem aquela mulher que nem fala português meter-se ali a atrapalhar!" Respondeu-lhe a rapariga corajosa que seguia à minha frente, "ela é médica, minha senhora".
Quando todos os passageiros regressaram aos seus lugares, excepto o homem que ali ficou com os bombeiros, tão sozinho quanto já estava, retomámos a viagem. Em tom de rescaldo, desesperada com tanta vergonha, atrevi-me por fim a perguntar a uma jovem que teria estado lá fora com a médica, se tinham descoberto qual era o problema do senhor afinal. Respondeu-me quase em sussurro, a expressão séria no rosto: "Tem um tumor".
Engoli em seco.
As asneiras sucediam-se, não sei porquê mas decidi informar a idosa ao meu lado que afinal o senhor não tinha quebra de tensão nenhuma (isso eu teria calculado, mas de nada serviu), era um tumor, "ai, coitadinho do senhor", respondeu ela. Talvez tenha ficado com a sensação de alívio depois de finalmente ter falado, mas afinal o senhor ficou lá, a minutos do hospital, pronto para se tratar de uma doença grave. Eu segui, com a minha roupa condizente e os meus óculos de marca, para o meu destino algarvio, os pensamentos sobre aquele homem a esconderem-se na mente, qual indivíduo com vida razoável a ignorar um mendigo por quem passa na rua.
Senti-me um nojo.
Quando vi este mar, algum tempo depois, na manhã de um domingo no Algarve, e tirei esta fotografia, acordei. Apercebi-me que me lembrei daquele homem, negro e escanzelado, todos os dias que se seguiram. Quis saber onde e como ele estava, quis aplicar a minha vontade duradoura de fazer voluntariado num qualquer hospital, quem sabe até no IPO, mas isso seria muito pesado. Seria e foi. Percebi ali, mais uma vez, de frente, sem ser pela TV ou por histórias ouvidas, que a doença dói, faz sofrer, faz chorar. Lembrei-me dos bombeiros, que sem dúvida respeito e a quem agradeço por terem poupado o país de arder todo, e desejei que algum médico já tivesse tratado aquele doente tão transparente.
Olhei para aquele mar com tristeza. Sem reacção. Estática e muda. E continuei as minhas férias.

28 agosto, 2005

Willkommen


Bem-vindos! Sugiro que leiam a mensagem de apresentação deste novo blog para que entendam, de alguma forma, a razão pela qual adoptei um novo espaço. Formalismos aparte, espero que isto (re)sulte...