31 janeiro, 2006

Schindler.


Não me perdoo por esta demora. Vinte anos são oportunidades a mais para ter visto este filme. Talvez tenha fugido, por saber que era cruel demais. A realidade mais real que já aprendi e que não foi mais do que “ouvir falar”. Noutros filmes, noutros livros. Impossível, totalmente impossível sentir o que cada pessoa daquelas sentiu, cada gueto, cada campo, cada carruagem, cada fuzilado que contribuiu para os seis milhões. E porquê? Por nada. Por nada que o justifique. Pura loucura, puro extremo, puro radicalismo. O soldado enlouquecido a disparar contra os corpos incinerados. O grito frenético “Schneller!” que cortava mais um pouco da pouca carne que ali havia. O chicote, o gás, o tiro. Certeiro. Assim, de repente, sem ninguém poder olhar. Só nós, do outro lado do ecrã, numa tarde de lazer, numa sala aquecida, pudemos ver. Pagámos para ver. Mas nem por isso sentimos. Do pouco que consegui tremer, fugir à vista ou chorar, que no fundo não foi nada, apreendi mais um pouco das perspectivas. Só perspectivas muito fortes poderiam criar dicotomias daquelas, entre o bem e o mal, a escravidão e a impiedade, a revolta e a compreensão. Do que nos ensinam hoje de tantos lados, é possível sentir pena do Hitler, naturalmente multiplicada infinitamente para o Judeu. Mas mais do que sentir, importa compreender. Hoje tentei. Schindler mostrou que há um caminho para essa compreensão. Porque os olhos dele também tremeram, porque alimentou, porque hidratou, porque aqueceu. Apesar de tudo, Schindler ajudou. Contornou o sistema numa era de pura linearidade. Martirizou-se quando percebeu que o seu carro teria salvo mais 10 pessoas. Então fugiu. Desde então, nem um onze de Setembro faria esquecer uma atrocidade destas. Não foram milhares queimados. Foram milhões. Olhados nos olhos e executados. Assim. De um segundo para o outro. Enquanto os outros continuavam o seu trabalho, aguardando, conformados, o seu destino.

“Sou um membro do partido nazi. Sou um industrial que promove a escravidão. Sou um criminoso. Agora vocês serão libertados, e eu serei perseguido.”

Oskar Schindler

29 janeiro, 2006

Com aqueles zeros todos à direita do Jackpot Euromilhões?...


...reconstruía as twin towers de nova iorque, tirava o país da crise financeira (que a de indentidade não se resolve assim), comprava a aroeira inteira para distribuir pelos meus amigos, tinha a colecção toda da pepe jeans só para mim, dava a volta ao mundo, sim, comprava os clichés todos, dava à Oprah para ajudar as crianças, criava cidades só para idosos, pagava para conhecer os hanson como tanto sonhei há uns anos, recuperava o nosso monte alentejano, criava um semanário feminino, empregava os meus amigos todos, punha um ginásio em casa, comprava uma biblioteca, comprava uma casa em Nova Iorque, outra no Rio de Janeiro e outra em Cabo Verde para os meus Pais, atravessava com eles a América, fazia um parque só para coelhos, o "Fofo Park", comprava o jon bon jovi para ter à minha janela e olhar para ele quando quisesse, comprava uma máquina que transportasse a genialidade dos nerds para o vazio cerebral dos (ou das) "vou pá nêv", exterminava os mitras, comprava a Lua inteira e deixava o Tom Cruise na miséria, publicava um livro em todas as línguas para o mundo inteiro, fazia um retiro de Portugal em Nova Iorque por uns anos... para pensar numa escolha... crio uma faculdade de medicina em Portugal que deixe entrar todos os sonhadores vocacionados ou crio uma estação de televisão internacional na República Checa?...

22 janeiro, 2006

Era uma vez uma carta



Toda a magia partia de uma carta de um papel amarelado selada a lacre. Do pombo à criada assim se fazia unir o amor de dois jovens, ou adultos, ou amantes comprometidos. O respeito era a ameaça constante e assim o amor parecia ter mais força e razão de ser. Um “amo-te” manuscrito numa caligrafia antiquada, rebocada e completa fazia os sonhos dos apaixonados. Sem tréguas, levava a loucuras irreversíveis. Especulava-se, imaginava-se, a ansiedade pela carta entregue em mãos alimentava a paixão.

As pessoas movimentaram-se, transformaram-se, mudaram de habitação. No campo ou na cidade os encontros conquistaram legitimidade, aos poucos a proibição de seguir a vontade própria constituiu um atentado à independência de uma individualidade tão recalcada.

O tempo em que a vida definiu que eu deveria enfrentar a puberdade e a adolescência sofreu, ele próprio, uma evolução. Esperei ansiosamente por um encontro, consciencializei-me daquilo que a visão me poderia mostrar. Acordava e era esse o meu desejo, ver, esperar, imaginar-me a dizer algo cara a cara. Os bilhetes eram uma opção, num papel branco pautado, rasgado e deitado fora por ser banalmente barato. Também o “beep”, não tão usual por obrigar a divulgação de muitos algarismos entre muitas pessoas, serviu para consolidar intrigas, declarar o que a presença física bloqueava, quebrar segredos e assustar.

Eis o telemóvel. De repente tive um. Era grande, preto e pesado, o ecrã era verde e pequeno. Com números pessoais a divulgarem-se aos poucos, comecei a optar pela declaração via “mensagem escrita”, vulgo nome para aquilo que se designa hoje de “SMS”. Tudo o que escrevia cabia apenas numa mensagem e assim me controlava por ter vergonha de telefonar. Continuava a telefonar apenas pelo telefone, vulgo nome para o que chamamos hoje de “telefone fixo”, tal a importância de garantir a diferenciação. Todas as letras, sem engolir nenhuma, eram maiúsculas. Não fazia juras de amor eterno, apenas confessava a ansiedade de uma imagem visível que não me faria falar.

Mais depressa ainda vi todos os telemóveis em meu redor a serem renovados. De repente mais pequenos, de repente mais leves, de repente mais funcionais e mais caros. De repente com um ecrã maior onde se via melhor a “SMS”. No mês seguinte, o topo de gama punha o outro pobre a um canto, fazendo os adolescentes mais novos que eu chorar por um, mais do que choravam por um amor perdido. A uma velocidade estonteante os telemóveis encheram as montras e a publicidade aos telemóveis encheu o horário nobre do pequeno ecrã televisivo, para nunca mais desaparecer.

O conceito mudou. Da única hipótese comunicativa em que consistia a carta manuscrita passámos para a mensagem digital, o e-mail, a SMS. Os encontros com a genuinidade da aparência que observamos são substituídos pelas MMS. O que for escrito, escreve-se na Internet, onde um qualquer portal “www” dá um recado rápido sem perda de tempo nem de dinheiro. Agora, o que importa é “mostrar o que quero dizer”. Fotografa o nada, clica, legenda, envia. Como se não houvesse mesmo palavras para descrever. Do outro lado é recebida a declaração, a expressão de um amor temporário em caras deformadas e palavras abreviadas. Este novo pombo apita estridentemente durante a noite, para tocar o aviso urgente e sem espera de que alguém se lembrou de nós ou para deixar uma mera mensagem. Se não apetecer não lê, se houver falha técnica não chega a receber sequer, se não gostar do que ler apaga, sem tempo para a reflexão feita ao rasgar e ao queimar uma carta. Não há tempo para chorar enquanto se apaga uma SMS. Não preciso de querer contar a alguém o que outro alguém me disse, porque é possível lê-lo num objecto que vem sempre connosco e que abandonamos à mercê alheia quando vamos à casa-de-banho de um café.

O que ninguém sabia que podia ser fruto ou objecto de discussão, passa a sê-lo. Via SMS. É mais prático, mais directo, mais polémico. As verdades dizem-se de telemóvel para telemóvel, de um computador para outro computador, para num café não se saber como abordar o assunto exposto por escrito. As discussões criam-se numa mensagem escrita. A aproximação é também mais viável, quando o horário laboral ou as férias suscitam a saudade, a ansiedade e a vontade de saber e dizer a cada minuto. O correio manual é antiquado, é lento, serve agora para resolver questões passadas e que o tempo também demorou demasiado a pôr na mesa.

De repente, uma “SMS para o 3939” devolve-me uma quadra de amor que posso enviar ao outro adolescente sem ler e sem sentir. Se mudar o número, posso até insultar a minha ex-melhor amiga. Para outro conjunto de quatro algarismos tenho a sorte de receber fotografias de uma qualquer pop ou pornostar. Gosto que a minha música preferida toque para me lembrar que alguém me quer dizer alguma coisa.

Nada se diz, tudo se envia dito.

As relações entre as pessoas mudam consoante a comunicação que elas estabelecem entre si. E as relações fazem a vida das pessoas e do Mundo. Por tudo isto e tanto mais, gastei já três anos de tempo a estudar o que é, afinal, a Comunicação.

18 janeiro, 2006

Amálgama


Detesto. Sentir-me assim, dar-me para ser assim, ter saído assim. Tão pura numas coisas, tão rancorosa noutras, paciente, impaciente, revoltada, amiga, inimiga, dedicada, egoísta. Impulsiva. Aquela grande árvore da Amizade que me deu tantos frutos na adolescência, tanto papel, que atirei um dia pela varanda fora, sem hipótese de reciclagem. Não voltaria atrás, nem volto, nunca, porque sei que os frutos estavam artificiais, com uma cor pouco natural. Então não me arrependo. E no entanto tenho remorsos. De não ter sido outra pessoa, mais tolerante, mais pacífica, mais compreensiva. Ouviria, choraria, mas talvez desse o abraço apertado que há dois dias me faria ter-lhe ligado a dar os parabéns. Não dei. É um dia penoso. Sê-lo-á para sempre.

Hoje, pareço gostar de repeti-lo. Não que tenha estagnado, pois sinto-me diferente. Sem dúvida, aprendi e cresci muito. É a inevitabilidade merecida do sofrimento. Mas porque os meus princípios são os mesmos. Ainda que tenha conseguido mudar de atitudes, continuo a revoltar-me com as mesmas pequenas coisas. Enervo-me, bloqueio, não perdoo, não dou espaço de manobra. Sou cruelmente fria. E olho para o lado, onde aqueles que adoro, que são tantos!, recebem toda a minha transparente dedicação.

Gostava de acreditar que tudo isto é genuinidade. É revolta contra o cinismo que já me rodeou tantas vezes, ao longo de tantos anos. Gostava de me orgulhar deste sentimento, que é cubo de gelo, mas também é natural, puro, sem sombras nem turvação. Não gosto de me contradizer e por isso sigo uma dialéctica que acaba por me atormentar. Gostava de ser criança outra vez, onde tudo à minha volta seria assim, coloridamente transparente. Gostava de cantar e sorrir sem imaginar a possibilidade de ficar sem aquela amiga, ou aquelas amigas, ou aqueles amigos, de quem e por quem tanto esperei. Já perdi muita coisa assim.

Hoje, sinto-me a seguir com firmeza essa directriz. Não mudo, porque não quero mudar. Sei que só assim posso garantir a minha sinceridade, ainda que desejasse (tanto!) não sentir as coisas assim. Há tantos que vejo que conseguem, belos e puros… Ora, não caiam no erro de o pretenderem de mim. Desiludam-se, afinal virei costas, já não sinto aquele carinho amigo. É pena, mas pode acontecer. Não sei como evitá-lo.

Hoje, sim, olham-me de lado, não me entendem ou não me reconhecem. Os segredos quebraram-se. Continuo a mesma, mas perante uma só figura consegui mudar de postura. Sem razão aparente. Apenas porque me irrita, ilegitimamente me irrita. Hoje pedem-me satisfações, colam-se à arrogância de me aconselhar sobre o que supostamente não saberia que era devido saber. Hoje perdem o interesse. Hoje, para amanhã o substituírem por aquele “nunca percebi o que se passou”.

Àqueles a quem um dia posso tratar mal, que são mais do que eu própria imagino, perdoem-me desde já. Eu não queria ser assim
.

08 janeiro, 2006

Unidos na fraqueza


É o último dia deste ano em que ela está acesa. E a primeira vez que a vejo acesa aqui, no meu refúgio. Já é novo ano, um igual ao anterior, que pouco me faz reflectir. Porque o fim do ano que agora acabou ainda me está na memória. Nada mudou. Está tudo presente demais, até.

Um presépio em frente a uma árvore iluminada e a luz de ver o que ela transmite. Ou pode transmitir. Ou poderia ter transmitido.

Para mim, o Natal que passou e que ainda não esqueci não era mais do que a celebração de uma união muito particular. Uma união que nunca existiria senão entre duas pessoas que se conhecem, se amam tal qual como são, que se compreendem e se defendem. Para lá de todos os insultos. Aquela entre aqueles que mais amo, a quem mais devo e agradeço, a quem desejava uma celebração mais merecida. Fiz o que pude, mas fui atirada para um poço de egoísmos e intrigas sem fundamento a que quase ninguém escapa hoje em dia. Família. Não consegui ter forças para tirá-los dali e fazerem abraçar-se com a força com que o fizeram depois de os convencionalismos o terem permitido. Depois de tudo tentarem para inverter o cenário. Não consegui, porque nunca mo deixaram, porque a tudo, sempre e com revolta minha me pouparam.

As luzes cintilantes da minha árvore, no meu refúgio silencioso e transparente, contam-me que a família é assim. Brilha forçada e automaticamente nas datas que assim o exigem. Hoje sei que ela teve esta data mais escura, qual árvore que abandonámos durante todo o Dezembro que já terminou.

Egoísmo não é pensar que só este refúgio me faz sentir em casa, mas sim ver como não me fazem, a mim e aos meus, sentir em casa noutro lugar. Talvez porque não saibam o que é sofrer a demora pelo erguer de um lar como este, que é o nosso tesouro e que vemos imitado até ao mais ínfimo pormenor, como o fruto de uma inveja orgulhosa. Egoísmo é tudo o que encontro fora deste refúgio, o único sítio onde tudo me é naturalmente claro. É tudo aquilo que as pessoas pensam não ver, iludidas com o que as tradições as obrigam a fazer. Egoísmo é acharmo-nos só "nós os quatro", mas também, mais gravemente, só "nós os três". Sentir-me-ia melhor, mesmo que longe dos quatro, se tivesse estado junto daqueles que não têm nada - nada que lhes permitisse ser egoístas. Pelo menos sei que não haveria lugares vazios na mesa, pois só lá estaria quem o pretendesse de livre vontade. Não, não estou melhor sem os meus, pelo contrário. Só quis estar ali para protegê-los de quem não queria que eles ali estivessem. Pois pelo que vi não quiseram.

Não reflicto. Apenas lembro, com esta clareza cruel, aquilo que fui obrigada a viver. Mas como todos os maus momentos, também com este eu aprendi que não adianta forçar a lágrima a não cair, não adianta evitar o curto-circuito já tão adiado, nem adianta vendar os olhos (ou deixar que mos vendem) para fingir que não sei o que sempre existiu.

Senti os meus princípios à flor da pele. A defesa daqueles que mais estimo, a revolta interior contra a injustiça e a ingratidão! e, ainda assim, a esperança num clima mais luminoso, que uma noite e uma mesa convenientemente decorada fizeram esvair-se. Contive-me, acreditei que não era verdade, que não era desilusão, sorri, procurei a calma, em mim e nos outros, chorei feridamente por dentro e assim o quis, forçando-me a viver aqueles minutos intermináveis como se pudessem ter o final feliz que não tiveram.

Senti o princípio da Família, presente nos injustiçados (e mais bem intencionados) e ausente dos anfitriões acusadores. Senti que não adianta incutir o espírito em quem não nasceu com ele, ou não o apreendeu devidamente.

Olhei para uma criança da mesma forma que vi os que já sabia que (não) iam sorrir para o quarto de século de união que, a partir deste Natal, se tornou o meu orgulho eterno.

Desenganem-se. As mais novas e mais poupadas são as mais esclarecidas, que agora sabem já ver e ouvir aquilo que os "mais grandes" sussurram e ditam entre linhas.

Para mim, tal como as luzes da minha árvore brilharam sem eu ver, também o meu Natal brilhou menos do que queria, do que esperava, do que merecia, do que fazia sentido ter brilhado. Havia tantas razões para isso. Apenas não conseguimos juntá-las. Assim só brilhou, e brilhará para sempre na memória, o ouro branco de duas peças que, tão escondidas, sabem exactamente o que sentem uma pela outra. Para lá de qualquer data ou (in)conveniência.

O meu Natal foi tão turvo quanto este texto.