“Sou um membro do partido nazi. Sou um industrial que promove a escravidão. Sou um criminoso. Agora vocês serão libertados, e eu serei perseguido.”
Oskar Schindler
De longe para perto, na partilha de olhares solitários, compulsivos.
É o último dia deste ano em que ela está acesa. E a primeira vez que a vejo acesa aqui, no meu refúgio. Já é novo ano, um igual ao anterior, que pouco me faz reflectir. Porque o fim do ano que agora acabou ainda me está na memória. Nada mudou. Está tudo presente demais, até.
Um presépio em frente a uma árvore iluminada e a luz de ver o que ela transmite. Ou pode transmitir. Ou poderia ter transmitido.
Para mim, o Natal que passou e que ainda não esqueci não era mais do que a celebração de uma união muito particular. Uma união que nunca existiria senão entre duas pessoas que se conhecem, se amam tal qual como são, que se compreendem e se defendem. Para lá de todos os insultos. Aquela entre aqueles que mais amo, a quem mais devo e agradeço, a quem desejava uma celebração mais merecida. Fiz o que pude, mas fui atirada para um poço de egoísmos e intrigas sem fundamento a que quase ninguém escapa hoje em dia. Família. Não consegui ter forças para tirá-los dali e fazerem abraçar-se com a força com que o fizeram depois de os convencionalismos o terem permitido. Depois de tudo tentarem para inverter o cenário. Não consegui, porque nunca mo deixaram, porque a tudo, sempre e com revolta minha me pouparam.
As luzes cintilantes da minha árvore, no meu refúgio silencioso e transparente, contam-me que a família é assim. Brilha forçada e automaticamente nas datas que assim o exigem. Hoje sei que ela teve esta data mais escura, qual árvore que abandonámos durante todo o Dezembro que já terminou.
Egoísmo não é pensar que só este refúgio me faz sentir em casa, mas sim ver como não me fazem, a mim e aos meus, sentir em casa noutro lugar. Talvez porque não saibam o que é sofrer a demora pelo erguer de um lar como este, que é o nosso tesouro e que vemos imitado até ao mais ínfimo pormenor, como o fruto de uma inveja orgulhosa. Egoísmo é tudo o que encontro fora deste refúgio, o único sítio onde tudo me é naturalmente claro. É tudo aquilo que as pessoas pensam não ver, iludidas com o que as tradições as obrigam a fazer. Egoísmo é acharmo-nos só "nós os quatro", mas também, mais gravemente, só "nós os três". Sentir-me-ia melhor, mesmo que longe dos quatro, se tivesse estado junto daqueles que não têm nada - nada que lhes permitisse ser egoístas. Pelo menos sei que não haveria lugares vazios na mesa, pois só lá estaria quem o pretendesse de livre vontade. Não, não estou melhor sem os meus, pelo contrário. Só quis estar ali para protegê-los de quem não queria que eles ali estivessem. Pois pelo que vi não quiseram.
Não reflicto. Apenas lembro, com esta clareza cruel, aquilo que fui obrigada a viver. Mas como todos os maus momentos, também com este eu aprendi que não adianta forçar a lágrima a não cair, não adianta evitar o curto-circuito já tão adiado, nem adianta vendar os olhos (ou deixar que mos vendem) para fingir que não sei o que sempre existiu.
Senti os meus princípios à flor da pele. A defesa daqueles que mais estimo, a revolta interior contra a injustiça e a ingratidão! e, ainda assim, a esperança num clima mais luminoso, que uma noite e uma mesa convenientemente decorada fizeram esvair-se. Contive-me, acreditei que não era verdade, que não era desilusão, sorri, procurei a calma, em mim e nos outros, chorei feridamente por dentro e assim o quis, forçando-me a viver aqueles minutos intermináveis como se pudessem ter o final feliz que não tiveram.
Senti o princípio da Família, presente nos injustiçados (e mais bem intencionados) e ausente dos anfitriões acusadores. Senti que não adianta incutir o espírito em quem não nasceu com ele, ou não o apreendeu devidamente.
Olhei para uma criança da mesma forma que vi os que já sabia que (não) iam sorrir para o quarto de século de união que, a partir deste Natal, se tornou o meu orgulho eterno.
Desenganem-se. As mais novas e mais poupadas são as mais esclarecidas, que agora sabem já ver e ouvir aquilo que os "mais grandes" sussurram e ditam entre linhas.
Para mim, tal como as luzes da minha árvore brilharam sem eu ver, também o meu Natal brilhou menos do que queria, do que esperava, do que merecia, do que fazia sentido ter brilhado. Havia tantas razões para isso. Apenas não conseguimos juntá-las. Assim só brilhou, e brilhará para sempre na memória, o ouro branco de duas peças que, tão escondidas, sabem exactamente o que sentem uma pela outra. Para lá de qualquer data ou (in)conveniência.
O meu Natal foi tão turvo quanto este texto.