30 outubro, 2005

O fim do mundo

« Uma mulher discute com a amiga uma conversa entrecortada de apóstrofes e outras indignações.
(...)
Ninguém, na azáfama do regresso a casa, parece preocupado com os magnos problemas da filosofia e da religião, quem sou, para onde vou e o que faço aqui.
(...)
Não seria bom pararmos para nos interrogarmos, não agora pelo menos, quando o 38 está a chegar (...).
(...)
E o mundo sentado na sua poltrona fica a saber das duzentas, ou quatrocentas, ou seiscentas crianças que o terramoto apanhou dentro de uma escola.
(...)
E o mundo fica a saber (...) do tsunami, da explosão, do carro armadilhado, do inocente assassinado, da onda de choque, da derrocada, da multidão desenfreada.
(...)
Não é o que se sofre e como se sofre, é o quanto se sofre.
(...)
A guerra do Iraque podia ser narrada assim, em números diários atirados para o rodapé dos telejornais.
(...)
Como se cada cadáver que se juntasse à notícia lhe conferisse uma qualidade especial, e nos poupasse a nós, os felizes que deambulamos no anonimato da estatística.
(...)
Os sobreviventes não nos interessam.
(...)
A vida segue igual até ao fim do mundo. »
Clara Ferreira Alves

18 outubro, 2005

Sorriso procura-se


Nunca mais o vi.

Não sei porque me arrasto desta forma há tanto tempo. Há mais de um mês que os meus pés transbordam da cama. Não quero ouvir, não quero ouvir repetir, não quero ver o que via há tão pouco tempo. Desnecessito dessa euforia, desse rescaldo de férias para os próprios amigos. Nem sequer me apetece perguntar. Não me apetece ouvir, contar, ouvir, contar, criticar, rir, conversar. Nem dialogar, nem conviver. Não quero um café relaxante, muito menos uma música estridente a tirar-me a noite de sono tranquilo. Na minha cama, nos meus lençóis, na minha almofada só minha.

Mas nem isso me deixam fazer. Tenho de me levantar todos os dias quando ainda converso com a minha almofada. (Até isso eu deixo a meio). Arrasto-me novamente para essa regra, esse curso de regras, este percurso que não me ensina as regras para aguentá-lo e sobretudo esta regra tão minha de não conseguir, de não acreditar, de não saber fazer mais. De não sorrir.

Desmotivo. Com tudo, com toda a gente, comigo mesma. Não me apetece ouvir-me, então calo-me. Não me apetece sequer ouvir o ecoar dos meus pensamentos dentro de mim, então olho para baixo e choro. Como se o soluçar abafasse o que penso. Parece que eu já nem penso em nada, que deixei de raciocinar. Todas as minhas ideias ficam pela metade, ou são turvas demais para que alguém as entenda. Libertar esta minha ampla frustração resulta sempre num desabafo pobre, durante uma conversa inoportuna. Então as ideias apodrecem e no dia seguinte já não me lembro de onde vieram.

Corro e salto desenfreada. Eu esforço-me, sei que me esforço. É incrível como nem a desmotivação me deixa ser desorganizada, tal é o pânico de me perder de vez. Talvez deva ver isso como uma contra-atitude, como a vontade de transpirar todas os pensamentos apodrecidos. Cinzentos e feitos cinza. Mas parece que nem isso resulta, porque logo depois esfrego a pele, deixo-me encharcar e fecho os olhos em busca de uma nova ideia, mais colorida e... possível. A desmotivação impede-me. Baixo novamente a cabeça e as lágrimas misturam-se com a água. Vivo na ilusão de as disfarçar, mas o doce é o oposto do salgado...

Não quero falar sobre isto. Outrora senti saudade daquela conversa confidencial, mas hoje, agora, não me serviria de nada. Deixei de saber falar espontaneamente. Os pensamentos correm mas a neblina desta alma confusa não os deixa passar para a voz, esta voz trémula e insegura. Esta alma fria que aproveita o vento invernoso para se esconder ainda mais, sob o casaco e o guarda-chuva. Esta alma que corre na esperança de avivar o ânimo quando sente o aroma das castanhas assadas... e que abranda, frustrada, quando esse empurrão se desvanece, assim, num segundo. Sem saber porquê.

E no entanto falo aqui. Falo aqui à mercê de todos os olhos do mundo que entendam este dialecto - responsável por tantas das minhas dúvidas. Não quero que vejam esta fraqueza tão exposta, mas quero lá saber, este clic é a hipótese mais próxima que tenho de me obrigar a levar alguma coisa até ao fim. Se quem eu não queria que lesse, ler, paciência. Talvez essa libertação sirva de bofetada para esta birra cinzenta, muda e sem motivo. Digo a todos que sim, estou "assim", ou melhor não estou, não contem comigo na vossa animação. Não sei acreditar, não encontro essa estima pessoal nem o estímulo para esse encontro. Não sei como aprender, não apreendo nada do que me ensinam, não consigo mais dizer o que penso e parece que já não há palavras que me convençam de que presto. Não consigo responder ao "que tens?", pois não tenho nada. Pelo contrário, falta-me. Falta-me vivacidade, clareza, ego, vontade, coragem, talento, alegria.

Falta-me um sorriso. Que não sei onde está nem vou procurar. Não me apetece.

14 outubro, 2005

Canoa...


Já aconteceu há vários dias e a magia do momento desvanece com o tempo, mas não quis atirar fora esta réstia de sensibilidade inspiradora.
Carlos do Carmo com a Orquestra Metropolitana de Lisboa no Coliseu dos Recreios.

Não sou especialista em Fado, nem sequer posso dizer que o conheço bem. Sei porém que é para ser ouvido em silêncio, como diz o ditado, e sem acompanhamento de palmas. Assim o defendeu orgulhosamente o próprio Carlos do Carmo, direccionando as palmas para a música popular.
Não sei cantar nem tocar um instrumento com um mínimo de mestria, mas acredito que o requisito de concentração delicada para ambas as práticas é com certeza abalado pelas fortes e especturadas tossidelas portuguesas que fazem estremecer o Coliseu a cada dois minutos.
Não posso dizer que aqueles fados me preencheram tanto como preencheram o anfitrião com 42 anos de carreira. Nem sequer como preencheram aos senhores que, na plateia, absorviam aqueles poemas como quem revive mentalmente os anos que deixou para trás.
Não sou mais do que uma mera jovem que teve a oportunidade de assistir àquele concerto, de tentar dar atenção à minúcia de todo um trabalho de orquestra, de não esquecer que cada músico transporta uma parte de si para aquela melodia penetrante.
Sei apenas que me deleitou essa melodia, que apreciei como pude, modesta e leigamente. Sorri por esse deleite; por apreciar tão sem esforço algo que tem no meu país uma raiz tão vincada. Deliciei-me com as entrelinhas cantadas à minha cidade, não como menina e moça mas como fonte inspiradora com tanto a contemplar.

Carlos do Carmo fez-me renovar o ar nos pulmões, lembrou-me do que era sorrir com sentimento, despertou-me a audição para tudo o que nos oferece ensinamentos disfarçadamente. Não cantando "Os putos", relembrou-me que muitos caprichos nesta vida não são para ser satisfeitos.

Que quando morre uma andorinha, não acaba a Primavera...