Há um ano (o ano que fez há dois dias e que nao me deixou escrever mais do que duas linhas, porque depois de um ano acontece muita coisa e calhou trabalhar ao domingo)... há um ano acordei com a respiração acelerada, mas com uma calma que reflectia a falta de espaço para mais medos. Toda eu era pavor do que me esperava. A mala preta (a mesma citada há pouco tempo) estava encostada à secretária de madeira clara, ainda aberta, à espera que eu me lembrasse de mais alguma coisa "imprescindível para viver 5 meses".
Fiz um único telefonema. Aquele que me deu 99% de certezas de que a querida Catarina tinha sido colocada em Medicina. Lembro-me que esse foi o único momento em que me senti totalmente feliz naquele dia. Todos os outros eram metade medo, metade expectativa.
Fui tomar o pequeno-almoço à Versailles com os meus Pais. Tinha saído o jornal Sol nesse dia, pela primeira vez. Saboreei um croissant e um sumo de laranja sem a consciência de que tal coisa não me surgiria tão cedo na Alemanha.
Um dia de sol e calor. Trazia a mesma roupa que decidi vestir no último dia, o já nostálgico 27 de Julho de 2007. Também não tinha noção da saudade que o sol me traria.
Peguei nas malas, tantas. E fui para o aeroporto com Mãe, Pai e irmã. Não me lembro do que disse, mas sei que me saíam expressões do mais quotidiano possível, abafando avisos sobre bilhetes e passaportes, na esperança de me convencer que amanhã seria mais um dia em Lisboa.
Mas não. No tapete rolante do check-in, ao ver as minhas malas partir, percebi que estaria quase-quase a partir atrás delas.
Lembro-me do bolo de arroz que aí me alimentou para o resto do dia, se é que chegou a passar da garganta. E lembro-me da mesa comprida improvisada, com Família, amigos e Miguel, de onde se afastou a minha Mãe por instantes, no primeiro momento de aflição. Lembro-me de sorrir para querer convencê-los a todos que estava bem.
Um ano depois, a imagem da despedida de todas aquelas pessoas importantes, e importantes acima de qualquer distância, um ano depois essa imagem não descrevo, porque não se descreve.
Seguir "para trás do biombo" foi literalmente o momento da passagem para o lado de lá. O senhor do controlo de bagagem tentou acalmar os meus soluços com um "não fique assim triste". Hoje tenho pena de mim quando me lembro do medo que me assolava.
Partida para Palma de Maiorca, avião cheio de portugueses e espanhóis. Partida para Leipzig, avião cheio de loiros, branquinhos, caladinhos. Muitas horas de viagem, para pensar, ou não pensar de todo. Respiração acelerada, apatia, tudo junto.
Aterrei numa cidade escura, silenciosa e de pouca gente. A cidade que se tornou acolhedora, querida, palco do ano mais intenso da minha vida. A minha cidade.
Tive a grande sorte de ter a Clara à minha espera. A única morena que encontrei no tapete da bagagem, cheia de malas e portátil a tiracolo, chamou-me a atenção. "Deve ser espanhola", pensei. Dois dias depois cruzámo-nos na matrícula da faculdade e perguntámos em uníssono, para nos apoiarmos nos primeiros tempos, esses tão desafiantes: "Bist du portugiesin?"... "Sou!".
A Clara sorriu durante todo o percurso, durante toda a semana. Mas o que marcou mais foi aquela noite. Era sábado à noite, os eléctricos iam cheios de jovens divertidos. E eu, no meio deles, com centenas de quilos às costas, a tentar perceber aquela língua que soa a quem come tostas.
Rodinhas que pisaram os passeios da antiga RDA, até à Tarostrasse 12, quarto 537, que desde esse momento se tornou no espaço da maior prova que dei a mim mesma.
Em casa abri a mala preta. E nos dias que se seguiram, desfiz a mala, aos pouquinhos, até tudo estar cá fora.
Sabia lá eu que difícil seria voltar a enchê-la.
"Entenda:
Há 7 anos