22 abril, 2008

Comboio - 2

Mero cenário de dias bonitos e compridos. Acordo antes das sete da manhã, mas o sol já vai bem alto e o céu está azul. Há muitos meses que não sabia o que era estar antes das oito horas na rua, por isso nunca me tinha apercebido do movimento.
Criancinhas de seis e sete anos, com mochilas maiores do que elas mesmas, vão sozinhas ou em grupo para a escola, a pé, sem medo. E sem medo também os pais que os deixam ir.
Bicicletas passam muitas. Passam assim a correr, dão-me saudades da minha correria a pedalar.
E lá vou eu a caminhar durante 7 minutos à estação, música nos ouvidos, mãos fora dos bolsos, que o frio já não exige tanto.
Hoje entrei numa carruagem mais ao fundo da estação, com esperança de que fosse mais vazia. O batalhão de gente era o habitual, e é engraçado como vou reconhecendo pessoas todos os dias. Os tais malucos que fazem este percurso diário.
Como sempre, esse mesmo batalhão entra e divide-se entre o piso de cima e o de baixo. Mas desta vez, por algum motivo, todos os que começavam a subir ou a descer as escadas, voltavam para trás. Olhei com a atenção que as 8 horas da manhã permitem: ah, primeira classe. Costuma ser só um cubículo, mas desta vez era uma carruagem inteira. Então o batalhão deixou-se ficar no átrio em pé, ao pé da porta, porque é proibido ocupar a primeira classe. Espreitei, as cadeiras eram largas, tudo tem mais espaço, tem um ar acolhedor. Quase todas as cadeiras estão vazias, mas os alemães - e eu - mantêm-se todos de pé, à entrada. É proibido.
Todos os dias, naquele que é um comboio regional e por isso o mais barato, não vejo um pedinte, não tenho receio de nada, tudo cheira a banho matinal, só vejo óculos e jornais abertos. Computadores portáteis abertos, um por cada 4 pessoas.
Onde está a primeira classe, a digna de ocupar a outra carruagem?

Apesar de atravessar o semáforo vermelho, não me sento na carruagem da primeira classe. Sentei-me nas escadinhas, sossegada, o meu livro também aberto, naquele percurso de 18 minutos. E chegando a Köln Süd, saí para a segunda metade do percurso até ao trabalho.

09 abril, 2008

Um dia

escrevo um livro.

03 abril, 2008

No comboio - Episódio 1

Nesta aventura ferroviária diária Bona-Colónia que agora começou, presumo que virão outras histórias... aqui fica a primeira:

Entro com os phones postos nos ouvidos, música bem baixinha, para não incomodar. Eles são tão caladinhos que qualquer coisa os enerva - e há inclusive avisos nas janelas a pedir para não exagerar no volume...
O comboio está lata de sardinha, apesar dos dois andares. São quase 19 horas. Pela primeira vez não tenho lugar sentada, então fico de pé no corredor entre os dois pisos, mão no corrimão das escadas. Reparo que vão dois homens com os seus 50 anos, muito animados ao meu lado, também de pé, com garrafas de cerveja na mão.
Quando percebo que estão a meter conversa com o rapaz que estava sentado ali no meio, presumi que a brincadeira podia estar quase a cair em cima de mim e, não tirando os phones dos ouvidos, desliguei a música para ouvir a conversa.
- Está com ar de quem vem do trabalho.
- É verdade.
- E para onde vai?
- Bonn.
- Não me diga que é outro maluco que vive em Bonn e trabalha em Köln.
- É verdade... são só 20 minutos, de carro não há estacionamento, de bicicleta sai longe. Pagam-me o Jobticket, por isso não pago nada, de carro seria uma despesa.

(São sempre tão matemáticos, estes alemães)

- Muito bem. Mas tire lá essa cara séria. Precisava de uma cerveja, você.
O rapaz estende a mão e o homem entrega-lhe a garrafa dele. Brindando com o outro homem, gritam perante a lata de sardinha em redor: "Prost!"

(Ao contrário do ambiente matinal, a esta hora todos sorriem.)

Com o silêncio que se impôs, eu espetei os olhos na janela e bloqueei o olhar, como quem vê o infinito. Pura distracção. Mas o homem mais castiço, sempre atento, mete de repente a cabeça dele à minha frente para me assustar.

(Se faço de conta que não vi, passo por antipática, e nem sequer posso fugir dali. Além disso está tudo olhar para aquele festival...)

Então sorrio...

- Olhem, ela tem covinhas! - grita ele a apontar para mim.

... E fico corada.

- A menina anda na escola?
- Eu não!
- O quê, não me diga que já trabalha?
- Já!...
- Com esses 16 aninhos?

(Oh não, mais um que acha que nem tenho idade para pedir cerveja. Já basta nos bares, no banco, até no supermercado... Raio de cara de bebé!)

- Eu não tenho 16 anos...
- Não acredito. E trabalha em quê?
- Numa agência de viagens.

Vira-se para o rapaz, que tinha dito que era jornalista técnico (ainda não percebi o que isso é) e volta a falar com ele. Ufa, já me deixou sossegada, pensei. Quando um minuto depois se volta outra vez para mim e diz qualquer coisa que, com voz de provinciano (como ele se auto-designou) e voz atropelada pela cerveja, eu não percebi.

(Por mais tempo que se viva aqui a ouvir e falar alemão, a toda a hora surgem palavras esquisitíssimas.)

Tiro os phones como quem nem ouviu o que ele disse: “Bitte?”

- Olha ela, está a ouvir música! Dei um coiso desses, Ipod né?, à minha filhota, que também tem 16 anos. Deixe cá ouvir essa música.

E lá estou eu no comboio-lata-de-sardinha, a esticar o phone para o senhor ouvir, com não sei quantos olhos postos em nós! O rapaz vai-se rindo…

- Sim senhor, boa música. Lkdlkjlakjdadlajdlaks? (Mais uma qualquer pergunta que não percebi.)

- Bitte? Não sei o que isso significa, é que eu não sou alemã…

- NÃO????

E pensei para mim, já deves ter bebido muito, para nem teres percebido isso, homem…

- Não, sou portuguesa.

E aí, o típico: vem o outro senhor todo entusiasmado dizer a frase do vira o disco e toca o mesmo: ah eu infelizmente não falo português, mas podemos falar espanhol!

- Você pode falar espanhol, mas eu respondo em português :)

Ele desiste.

Depois o outro homem castiço olha para mim de alto a baixo, cachecol e casaco em dia-de-neura-cinzenta.

- Credo, você consegue respirar com essa roupa toda?

- Consigo pois. Sou portuguesa, para mim nesta terra está sempre frio.

- Ah, pois é. Mas devia usar uma coisa mais leve. Eu comprei agora uma t-shirt do Hard-Rock em Berlin para a minha filhota, espero que ela goste. Também ficava contente com uma t-shirt do Hard-Rock?

- Quando tinha 16 anos, sim.

- Mas que idade tem você afinal?

- VINTE E DOIS!!!

- Não pode ser!!

- DOCH!!!!! (a palavra que mais gosto no alemão, para me dar razão!)

E sorri-lhe, começando a descer as escadas. Atrás de mim uma fila de gente para sair, depois do anúncio Bonn Hauptbahnhof.

- E a nossa conversa acaba assim?

- Desculpe, mas agora tenho do de ir…

E saí do comboio com a lata de sardinha a desfazer-se, voltei a pôr os phones, mãos nos bolsos, um leve sorrisinho de conforto sob o céu cinzento lá de cima.