19 dezembro, 2005

Um bom título






Depois de catorze horas de sono, esforço-me por lembrar todos os momentos que marcaram os últimos quatro dias. E tal como revelei no artigo de opinião de ontem, na qualidade de “jornalista do MUN Daily News”, a verdade é que me sinto bloqueada quando tento falar na experiência que adquiri a vários níveis.


Quando me foi sugerida a reunião de meia dúzia de pessoas que quisessem colaborar na cobertura jornalística de uma simulação do funcionamento das Nações Unidas, nunca pensei que pudesse vir a viver momentos tão... vivos.


Não é exagero, sinto-me realmente BEM. Pela experiência prática da procura de notícias, estórias, conversas de corredor ou meros acontecimentos de agenda. Pela fuga à FSCH, que ali, na FCT, tanto criticámos. Pela fuga às salas de aula com aulas, pela fuga às folhas de ponto, aos enunciados, aos horários.


Nestes dias, nem me lembro se tive horários. Sei que acordava automaticamente, com vontade para me levantar depois de tão poucas horas de sono, sem aquela desmotivação que, apesar do balanço positivo das experiências apreendidas, caracterizou a generalidade dos dias do semestre académico que agora se prepara para terminar. Ali eu tinha coisas para fazer, tinha produções que dependiam do meu gesto, da minha corrida àquela sala ou àquele auditório, do meu trabalho, da minha escrita, das fotografias da minha máquina.


Tive a oportunidade de ver os meus textozinhos, mesmo que tão literalmente simulados, publicados no jornal “de amanhã”. Os textos que produzi numa também simulada redacção, com os colegas que creio terem sonhado ali tanto quanto eu. O produto não foi real, mas a produção do pequeno sonho decerto tê-lo-á sido, não acham, caros jornalistas do MUN Daily News?


Os alunos engenheiros (no caso, matemáticos) não deram conta do evento, a avaliar pelas vezes em que entraram de rompante na pequena redacção bem como, ao que se sabe, nos formais comités. Tentou-se de tudo: trancar a sala à chave, colocar um aviso na porta, vandalizar o dito aviso com fórmulas matemáticas... e ainda assim eles não compreenderam que ali se reservava um local de trabalho muito peculiar e aparentemente sério.


No primeiro dia, o receio era total, mas o entusiasmo estava lá, camuflado. Ainda ninguém se conhecia bem, nem entre a pequena redacção, nem entre a organização, muito menos entre os diplomatas que discutiam protocolos e resoluções nos diversos comités. Assim o confirmaram as muitas entrevistas, realizadas tão ainda de pé-atrás entre os pequenos “breaks” dos “coffee-breaks”, à procura das primeiras reacções. A primeira edição do recém-formado MUN Daily News saiu consoante o previsto, mas talvez ainda um pouco sem sal. Queríamos mais, mais páginas, mais produção, mais entusiasmo. E assim lutámos por isso, até à uma da manhã na Associação de Estudantes da FCT, depois de expulsos da nossa já acarinhada redacção, que estava apenas reservada para o Portugal MUN até às 19 horas, “só até às 19 horas, só até às 19 horas, só até às 19 horas”. O cansaço acumulado dos trabalhos académicos a entregar até ao final da semana resultou num decréscimo do rendimento que, aliado à inexperiência dos pequenos jornalistas entusiasmados, permitiu a conclusão do jornal apenas à hora que todos sonhávamos já estar a dormir. A colega Sara Biscaia foi a grande resistente ao sono, firmemente agarrada ao seu gravador a escrever entrevistas feitas aos delegados dos vários países.


No dia seguinte, demos conta da importância de cada elemento da pequena redacção, que assim conseguiu reduzir o tempo para a conclusão do jornal, pronto a entregar. Produção em série, um insere, outro fotocopia, outro preenche a requisição de um dos mil aspectos que não precisámos de pagar, outro transporta, outro dobra, outro vinca, outro encaixa, outro empilha... para todos distribuírem. Calhou-me distribuir a edição do MUN Daily News na sala da Cimeira Euromediterrânica, onde o entusiasmo pela recepção do jornal não foi a mais calorosa de todos os comités mas onde senti, em todo o caso, uma enorme sensação de conforto e plenitude. “Aqui está o nosso trabalho ao vosso dispor”. Aliás, não poderíamos provar mais o nosso entusiasmo por este trabalho do que manifestando o enorme agrado pelas reclamações feitas por alguns delegados que se queixavam da deturpação da informação por parte dos jornalistas...


A eclosão de uma crise, no mesmo dia, apurou ainda mais o bichinho do stress que a todos afectou. Uma sugestão para o título, outra para a foto, outra para o pormenor “última hora” e outra pela abordagem (pelos vistos errónea) dos acontecimentos no Sudão e no Uganda fizeram daquela edição especial do MUN Daily News outra grande experiência. “Cada um de nós vai entrar no seu comité de rompante e assim todos os comités receberão a notícia ao mesmo tempo”, propôs a Ana Filipa, também já conquistada pelo stress jornalístico daquele mundo aparte em que vivemos por uns dias. (Sim, porque ontem no Bairro Alto eu e a jornalista Sara Barata julgámos ter visto por uma dezena de vezes o colega fotógrafo, o sr. Delegado da Arábia Saudita e outros por todo o lado...)


Nessa noite, porém, o trabalho acrescido manifestou-se no cansaço de todos os elementos. Apesar do convívio esperado (e até certo ponto concretizado) no jantar-cujo-encontro-do-restaurante-exigiu-tempo-extra-porque-todos-caíram-no-erro-de-acreditar-no-meu-sentido-de-orientação, concluímos que o melhor seria voltarmos para casa e trabalharmos individualmente.


Tomo partido deste momento para partilhar o meu orgulho quando dei por mim, à uma da manhã, no carro, depois de deixar os colegas nas respectivas casas (ou não), descontraidíssima numa visita extra-MUN. Sabia que teria de acordar seis horas depois e, no entanto, aproveitei aquele encontro pessoal ao máximo, acordadíssima, sem olhar para o relógio! Estou a evoluir!


Mas retomando, o dia de sexta-feira começou cedo, pela hora que referi, num movimento já bastante automático de “vou trabalhar, não tenho sono nenhum, toca a levantar esse rabo da cama que experiências estimulantes aguardam por ti”. Nelson Traquina esperava-me para me dar duas boas notícias (literalmente) e para receber de mim mais três trabalhos de produção jornalística: uma reportagem geral cujo balanço é, a meu ver, positivo, dada a boa organização de tarefas; uma reportagem individual que terminei num pequeno intervalo da hora do fecho da edição do jornal-real-de-sonho na tal noite na associação de estudantes (estou definitivamente a evoluir); e uma notícia de agência sobre ataques terroristas de norte a sul de Portugal, enunciada para ter sete parágrafos. Este terceiro trabalho foi sem dúvida o mais interessante. Assim o confirme Mariana Barbosa, a jornalista que se encontrava aproximadamente na mesma situação-de-sono que a minha pessoa. Falámos meia hora antes de olhar para o enunciado, soltando “como se sente?”, “quantos artigos escreveste para hoje?” e “mandaste o mail ao grafitti-man Guilherme?” que denunciavam a exclusividade do nosso interesse para o Portugal MUN a decorrer já do outro lado do rio. E mesmo quando pegámos no dito enunciado, começámos por esboçar na folha de rascunho expressões parecidas com “Federação Russa animada em jantar-convívio” ou “Crise no Sudão prevista para ser solucionada hoje na Assembleia Geral das Nações Unidas”. Mesmo assim, lá nos esforçámos por terminar o trabalho académico, qual responsabilidade que passou a fazer parte de nós, colegas de redacção, para cumprir todos os trabalhos solicitados. Da minha parte, escrevi a notícia tão ansiosamente à pressa que só no momento de passagem para a folha de ponto é que dei conta de ter escrito um parágrafo a mais... mas não há tempo, estamos perante a pirâmide invertida, corta o último e entrega.


Minutos depois já estavamos de partida para a nossa casa daqueles dias, FCT de nome... O cansaço era de facto evidente, a chegada à redacção foi tardia mas mesmo assim não sobrara já energia para ter o jornal pronto à mesma hora do dia anterior. Um café, dois cafés, lá saiu, lá foi lido e criticado pelos vários comités, um almoço às pressas, a inversão dos papéis quando os delegados rodearam os jornalistas a comentar o seu trabalho, mais um café e toca a instalar a cobertura jornalística na Assembleia Geral decorrida no Grande Auditório.


Muitas formalidades, muito trabalho de pesquisa, muitas conversas de corredor, muitas decisões e muitos discursos marcaram aquela interessante tarde em que o vento frio e cortante lá de fora foi abafado pelas acusações diplomáticas dissertadas à mesa em tom irónico e caloroso. Mesmo no coffee-break o trabalho foi activo, da minha parte atirei pela goela mais um café cheio e retomámos a sessão, cuja resolução concluía pouco mais do que o que todos sabiam à partida. Em suma, todos os presentes confirmaram que as formalidades de acontecimentos deste tipo atrasam em muito a aprovação de resoluções, mas nem por isso o empenho de parte a parte deixou de se fazer sentir.


Quando todos os diplomatas foram para casa vestir-se a rigor, os jornalistas permaneceram na redacção-reservada-apenas-até-às-19-horas até mais tarde, qual jornalismo que nunca tem horas. Um motivo de força maior se elevou, no entanto, arrastando todos os redactores para suas casas, vestir-se e pintar-se para estar à hora marcada na discoteca Kapital. Os cafés começavam a fazer efeito e a ânsia pela noite era visível, à procura de grandes acontecimentos para publicar na manhã seguinte.


Apesar de não ter sido esse o caso, porque o esgotamento aproximava-se, a noite foi aproveitada ao máximo. A imparcialidade da qualidade de jornalística terá de ser aqui abandonada, pois só posso revelar a minha opinião pessoal sobre o que ali se passou. No terceiro piso, lembro-me (...) de ter ouvido, finalmente em pista de dança, o excitante new hit da Madonna estilo anos 70 em que os mais tímidos delegados se revelaram. A partir daí, as vodKas Ke Karacterizam o grupo K, Kom vodKa igualmente no gelo, degradaram a minha imagem, impedindo que agora saiba relatar cronologicamente os acontecimentos . Hoje já sei que encontrei amigos extra-MUN, sei que roubei uns cornos de rena a alguém igualmente extra-MUN, , sei que o delegado da Argentina atirou a minha máquina fotográfica ao chão, sei que acusei a maioria dos diplomatas presentes de homossexualidade, sem que manifestei actos lesbianos no meio da pista de dança, sei que não sei de muita coisa, sei que às seis da manhã era a única que não queria saber do horário de trabalho para a manhã seguinte (o que prova novamente a mudança radical que operei nas células organziadas do meu organismo) e sei que nesse momento final aproveitei para retribuir o papel de pendura na boleia do delegado da França que terei conduzido perigosamente à faculdade nessa manhã. Pouco me lembrando do caminho até ao carro, estou agora consciente que arrastei quatro pessoas até uma padaria por minha causa, onde adquiri um pão-com-chouriço que levei meia-hora para acabar de comer. Aos ziguezagues procurei fazer uma expressão calma perante a minha Mãe, que se cruzou comigo, acordada, em casa, e caí redonda na cama depois de marcar o despertador para três horas depois.


O acordar foi o menos automático daqueles dias. Agoniada, a desesperar de sede e tontíssima tomei um banho que não me acordou e dei por mim a dar gargalhadas no carro, antes de apanhar as restantes jornalistas que se riram igualmente quando a troca dos nossos olhares denunciou o mesmo pensamento. Com receio de uma operação STOP que confirmasse a ainda presença de álcool no meu sangue, conduzi cuidadosamente até à FCT pela última vez.


Definitivamente o rendimento era quase nulo. A minha sorte foi ter escrito cinco artigos na noite anterior, com a energia que tinha guardado para a gala. Na manhã de ontem não fiz nada senão ler blogs, falar no MSN e beber água.


Depois de um almoço-buffet que não pôs de lado a qualidade da cantina da faculdade, com a qual a Avenida de Berna deveria aprender, o jornal saiu depois das cinco da tarde, o que só provou o nosso estado. Mesmo assim, a qualidade manteve-se, se esquecermos pormenores como a data da edição anterior que nem sequer foi alterada. O Suplemento “Making Of” captou a maioria das atenções e então percebemos que o trabalho tinha terminado. Na hora do reconhecimento, na sessão de encerramento, cada jornalista foi chamado ao palco para receber um diploma de organização que começou a alimentar o bichinho da nostalgia.


O útlimo coffee-break, mais digno de coffee-end, foi utilizado para as despedidas. Membros da organização despediam-se com abraços, fazendo votos para a realização de um World MUN em Portugal (eu vou!!!). Com os diplomatas parecia haver ainda alguma distanciação, provada com meros votos de Bom Natal.


No carro, a viagem para casa fez-se novamente em piloto automático (posso agora revelar aos meus colegas que foi um risco terem sido conduzidos por mim em tal patamar na escala de cansaço) e, ao chegar a casa, sozinha, senti-me vazia. Deixei de ser jornalista, despi a roupa (já não muito) formal, tirei o crachat que dizia "Press" e, ao contar às pessoas extra-MUN a experiência, percebi que “só quem lá está poderá perceber”. Foi um autêntico reality-show, com direito a regras, hierarquias, algum aprisionamento, muito trabalho, muita diversão e até algumas paixões.


Obrigada pelo fim tão solario que proporcionaram ao meu semestre. Senti-me realmente motivada. Sinto-me realmente feliz.

05 dezembro, 2005

O turbilhão


A cabeça está saturada. Folhas, ecrãs, cores, telemóveis, teclas, livros, mais folhas.

Vejo-me a sorrir, a rir, a dar gargalhadas e a fazer os outros rir. Solto-me, dinamizo-"me" (tão caro!...), telefono, vou, falo, faço. Cheguei ao ponto em que até me esqueço das coisas.

"Gostamos de quem sabe o que quer. Gostamos da vida como ela é." Eu não sei o que quero. Aquela folha, naquele dia, disse-me que o que eu queria não era viável, que era desgastante demais. Naquele dia, aquela viagem ensinou-me que procurar as pequenas coisas é como procurar um tesouro. Perto de todos mas que ninguém abre. Porque não lhe interessa, porque lhe passa ao lado, porque não tem tempo para essas coisas.

O ruído urbano tem deliciado e saturado a minha cabeça. Choca aquele braço encasacado com o meu, a minha mala é empurrada do outro lado, o guarda-chuva ameaça alguns pés. Tocam-se as pessoas com alarme, tocam as buzinas, tocam os telemóveis, toca o alarme de fecho de portas dos transportes. Lá fora ou ali dentro ninguém se toca humanamente e todos soltam o olhar assustado para o acaso dos diferentes que mantêm a mais banal das conversas.

Não gosto de conversar. Nada me sai como eu quero, preciso da minha memorização provocada, observo os outros em excesso. E eu, não faço nada. Digo que fez, digo que não gosto que fez e nada digo para procurar voltar a gostar do que as pessoas dizem ou fazem. As pessoas, essas, sim, são essas que me estão a saturar. E no entanto elas vivem bem, sorriem e até soltam gargalhadas com a reduzida percentagem de espontaneidade que sai da minha boca. Não sou eu que tenho de me sentir saturada. Sei bem quem tem sido saturante aqui.

Revolta-me pensar no que se pensa à nossa volta, porque a cada dia se pensa menos, e quem pensa mais sai prejudicado. Herdei esta obsessão pela concretização, por esta minúcia que, a dado ponto, me enlouquece. E sei, contudo, que não concretizo nada, que penso em demasia no que o outro encasacado fez mal, que me orgulho da minha visão madura, que aponto críticas que sei fundamentar e que no fim da história não me gratificam em nada, porque limito-me a ver o que se passa em meu redor.

Se eu não pensasse tanto, talvez fizesse mais. Frustra saber que faria as coisas certas e não me mexer para fazê-las. Frustra demais. Entristece, enlouquece. Satura.

Preciso de parar. As minhas folhas e o som de uma qualquer máquina obrigam-me a parar de pensar, este pensar que hoje já é fazer, é fazer ouvir o que penso. Mas já é tarde, a cabeça pesa, fazer agora é desgastante. Pensar, tudo bem. Isso não sai assim de mim.

São mais folhas que me esperam. E muito mais do que folhas.