31 outubro, 2007

Na calçada

O atendimento raramente simpático numa tasca ao cimo do Chiado, perto do Adamastor. Ruas lindas. Vejo o César, rapaz da mercearia que encantou a minha querida Julia. Que saudades que tenho dela. Como uma dourada escalada com batata cozida e grelos. Conversa familiar, que delícia...
Depois resolvo ir a pé. Não resisto à Häagen-Dazs da esquina, peço um copo de baunilha com caramelo e cookies, cobertura de chocolate de leite. Para levar. Hoje tenho direito, é a minha folga atirada para o meio da semana, o feriado antecipado. Jornalistas nunca vivem no presente, andam sempre adiantados.
Ponho os phones nos ouvidos e saboreio o meu gelado sob a luz de Lisboa num Outono ainda quente. Vou descendo até aos armazéns do Chiado, cruzo-me com mendigos, gente pseudo-fashion, muitos turistas. Que pena, os alemães não terem aquela cara feliz quando estão na terra deles. Desço, pondo colheradas à boca, alheia e tão presente no que me rodeia. Tiro os phones ao passar na carrinha do Fado, onde toca o álbum "Lisboa, cidade do Fado". Quando as cordas da guitarra portuguesa se dissipam, volto a pôr os phones.
Chego ao Rossio, volta a ser tudo plano. Gostava tanto de poder andar de bicicleta. Num quiosque que vende postais vejo o presidente da Câmara, António Costa. Sorrio, esqueço que não gosto dele e penso apenas na inveja inevitável que se tem de um homem que manda numa das cidades mais bonitas do mundo. Uns metros à frente um rapaz aproxima-se de mim com um bloco que adivinha inquéritos de rua. Estou bem-disposta, tenho tempo, páro e tiro os phones. "Trabalha?", perguntou-me. "Não...", respondi eu, sem perceber bem se estava a dizer a verdade ou a mentira. "Então não serve. Mas tem um sorriso muito bonito".
"Obrigada", disse, sorrindo. Segui o meu caminho, voltei a pôr os phones. Na esquina que dá para a nova estação do Rossio sinto o aroma das castanhas. Há-de chegar o seu tempo, agora ainda estou na fase dos gelados. Deitei o copinho no lixo e entrei no metro.
A música continua a acompanhar-me, tornando mesmo leve o ar subterrâneo.
As pessoas andam apressadas, o barulhinho dos sapatos na calçada da Baixa já não se ouve.
Na calma da minha folga, vejo tudo a correr à minha volta, nesta Lisboa luminosa que tanto me faz sorrir.

24 outubro, 2007

O país do "Ah menina, isso não é comigo"

Não consigo mais deixar de partilhar. Parece uma anedota.

O curso que tive a infeliz ideia de escolher obriga-me não só à realização de um determinado número de cadeiras, como também de um estágio - que estou quase (bom, quase...) a acabar - e à demonstração de "conhecimentos vivos" de uma língua estrangeira. Ora, a Faculdade realiza exames anunais, em Abril, para este efeito.

Dado que, em Abril, eu estava na Alemanha e não aqui, não pude realizar o exame. Tal não me preocupou por aí além, porque sabia que certificados de fora poderiam surtir o mesmo efeito - o que a Faculdade até agradece, porque não tem de gastar mais papel em mais um exame.

Vim da Alemanha com todos os comprovativos possíveis e imaginários de que tenho "conhecimentos vivos" da língua alemã, quanto mais não seja porque fui obrigada a fazer todas as cadeiras em alemão. Ora, com dois certificados oficialíssimos disponíveis para o efeito, contactei um Professor da Comissão Pedagógica ou Científica ou raio que o parta mais às hierarquias académicas, que simpaticamente (sem ironias) se disponibilizou a receber-me para analisar os certificados.


"Isto é perfeitamente válido", disse. "Só que...", claro, há sempre um "só que...", teria de me dirigir a um outro Professor para dar a aprovação oficial.


Contactei o Professor em questão para comparecer no seu gabinete, o que levou alguns dias, porque não podemos esquecer que tudo isto se faz em dias separados, uma vez que há horários de trabalho a cumprir. O Professor marcou um horário comigo, eu apareci, esperei meia hora até que outra Professora me disse que o Professor se tinha ausentado do país durante uma semana. Compreendi perfeitamente (sem ironias), até porque achava (na minha segurança ainda alemã) que era questão de adiar por uns dias aquilo que ficaria logo resolvido.

Qual não foi o meu espanto quando o Professor finalmente me recebeu, não olhou para a minha cara, muito menos para os certificados (quando eu tinha explicado a situação por e-mail) e disse apenas "sim, isso é válido, mas tem de fazer o pedido no Secretariado e só depois é que isso vem para mim e eu posso assinar".

"Bom dia", respondi, e dirigi-me ao secretariado. Um tal doutor que não sei como legitima voltou a não me olhar nos olhos e disse apenas "secretariado? Não, isso não é aqui. Isso é tudo na Repartição Académica". Penso eu para mim, o que é que distingue estas duas merdas se nenhuma delas funciona. Tudo bem, "bom dia", e fui para casa. Era demais num só dia para eu ainda ter a calma de "tirar senha" (essa expressão abominável) e esperar pela minha vez.


Voltei uns dias depois, quando a disponibilidade assim permitiu, esperei cerca de 40 minutos para que a única funcionária da Repartição me atendesse, para deparar com o seguinte diálogo:

- "Bom dia, eu precisava de fazer um pedido de reconhecimento destes certificados, para que eles sejam encaminhados ao Professor do Conselho raio-que-o-parta para que sejam assinados. Isto para poder terminar a Licenciatura de Ciências da Comunicação".
Olhou para mim com sobrolho levantado, como quem não faz ideia do que estou a falar, e respondeu:
- "Então está em Estudos Alemães e quer equivalência a uma cadeira, é isso?"
- "Não, como lhe disse estou de Ciências da Comunicação e não quero equivalência, quero que isto seja reconhecido por um Professor, mas por questões burocráticas o papel tem de partir daqui".
- "Pois, mas nós aqui só tratamos de línguas quando são alunos que estudam mesmo línguas". Olhou para os meus certificados e, ao ler a palavra "Erasmus", que não se referia a entidade nenhuma, e sim ao tema de um exame, que portanto não era chamado ao caso, esquivou-se: "Isto dos Erasmus tem de ser tratado é na Reitoria."
Sorri.
- "Tem a certeza?"
- Se lhe estou a dizer que nós aqui não fazemos isso, é porque tem mesmo de ir à Reitoria.
O "bom dia" já saiu com as costas viradas.

QUE. NERVOS.


Parecia que só queria provar que o que ela disse não fazia sentido nenhum e fui à Reitoria em Campolide. A vontade de lançar uma bomba na faculdade já era mais do que muita, mas depois pensei naqueles que vêm de outros cantos do país para tratar destas coisas e pensei: "eles têm mais direito a rebentar com isto".

Na recepção da Reitoria, tive de aguardar que a senhora acabasse a sua conversa ao telefone de "pois, mas a gente aqui trabalha... sim, depois contas-me essa história ahaha... havias de ver a cara dele bla bla..." e finalmente olhasse para mim e dissesse "diga, menina".

Expliquei a situação, o sobrolho levantado repetiu-se, como quem diz "tem a certeza que isso é aqui?", encaminhou-me para um outro Gabinete não sei do quê onde, mais uma vez, alguém viu a palavra "Erasmus" nos meus certificados e disse "pois, isso não é aqui, é ali com as meninas do Gabinete Erasmus".

Sorri de desespero. Nem deu para discutir a situação. Quando me vi no Gabinete Erasmus, cheio de jovens como eu a tentar que isto funcione, é óbvio que em vez de pedir que me resolvessem o problema, que obviamente não lhes cabia a elas resolver, optei por desabafar o ridículo da situação. Elas ouviram-me, conversaram, e eu vim-me embora, pelo menos com a sensação de que alguém me compreendia.

Ridículo.

Fui para casa, porque tinha sido a dose do dia. Contactei o primeiro Professor e expus a situação como quem diz "há aqui alguém que não me está a dizer o que é que eu devo fazer". A resposta foi "não pensei que isso fosse tão complicado". Eu também não. Então optei por não confiar em repartição nenhuma e escrevi eu própria um pedido de reconhecimento, dirigido a dois Professores, para que algum servisse. "Algum há-de servir de certeza", disseram-me. Voltei à Faculdade (é engraçado como isto está a levar semanas a fio), entreguei as cartas, com a esperança de ver o assunto como encerrado.

Eis que recebi um novo e-mail do Professor a dizer que "sim senhor, isto serve"... SÓ QUE... "terá de ir à Tesouraria ou à Repartição Académica pedir uma minuta de requerimento onde terá de escrever o pedido de dispensa de realização do exame, que a Professora aqui carimbará como "dispensado" e aí sim poderei anexar o seu pedido e os certificados e encerrar o assunto. Faça isso hoje ou, mais tardar, amanhã de manhã".

Claro que fui primeiro à Tesouraria, porque não queria ter de voltar a "tirar senha". Fiz questão de levar o e-mail do Professor para não dizerem que eu estava a inventar. Mas a novamente a minha ingenuidade e segurança alemãs não me fizeram prever a reacção mais provável: "Oh menina, minuta de requerimento? Nós aqui não temos nada disso. Só certificados de matrícula. Tem de ir ali à repartição".

Ela não se apercebe que para ir à repartição é preciso tirar uma manhã inteira.

"Obrigadinha", respondi.


No dia seguinte (para não explodir no anterior), fui tirar senha. Levei o e-mail. E fiz a mesma conversa, como quem tirou Direito e não Ciências da Comunicação:

- "Bom dia, eu precisava de uma minuta de requerimento para pedir dispensa de um exame de língua estrangeira, para poder acabar a minha Licenciatura." E estendi o e-mail.
Quando vi a demora na resposta, percebi que ainda não ia ser desta.
- "Isso não é assim que funciona. A menina terá de vir cá com os certificados, nós fazemos o pedido e ele é encaminhado ao Professor do Conselho Científico do seu Departamento."
- "Isso foi o que me disseram no início. Eu vim cá, esperei e insisti, mas a sua colega teimou comigo que não faziam isso aqui e, veja lá, mandou-me para a reitoria. Como é óbvio ninguém me resolveu o problema lá e eu ando nisto há dois meses."
Quando o senhor sorriu eu percebi que ele me estava a compreender. Ele, sozinho, não faz aquilo funcionar. Lá me deu umas indicações e... terei de lá voltar um dia destes.

Não vos conto o próximo capítulo, não vos desejo assim tanto mal. Gabo-vos a paciência se leram tudo até aqui. E em vez de me verem como alemã arrogante e intolerante, por favor, dêem-me razão.

22 outubro, 2007

O Homem.

«Vivemos rodeados de tecnologia, informação e betão; uma vida em ritmo acelerado sem tempo para reflectir.

Adoecemos e esperamos que um médico nos cure depressa, para que possamos regressar à nossa vida atarefada.

Quando uma doença é severa, o suficiente para pôr em risco a nossa vida, por vezes paramos para ponderar sobre a nossa existência. Mas, uma vez curados, partimos novamente sem pensar nos seres humanos extraordinários e complicados que somos.

Os nossos corpos são de facto mais intrincados, complexos e maravilhosos do que todos os computadores e geringonças que nos rodeiam actualmente. E no entanto, muitos de nós não sabem realmente o que se passa debaixo da nossa pele - como os nossos corpos funcionam, o que precisam para sobreviver, o que os destrói, o que os regenera.

BODIES... THE EXHIBITION é uma tentativa de ultrapassar este conjunto de circunstâncias desafortunadas. Assimile o conhecimento adquirido na exposição, expanda-o e use-o para se tornar num interveniente informado dos seus próprios cuidados de saúde. O que implica muito mais do que melhorar a sua dieta, ou iniciar um programa de exercício há muito necessário. Antes exige que estabeleça uma parceria com o seu médico para compreender o que é que você - e o seu corpo singular - precisa para manter uma vida saudável e compensadora.»

Gastei a minha manhã ali sozinha e fiquei perplexa. Até quarta-feira.

20 outubro, 2007

Jornalista.


Hoje é dia de folga.

Tiro a folga para aproveitar o sol que não tenho visto. Há um mês e meio que a minha noção de tempo se alterou e finalmente posso dizer que passei a valorizá-lo ao minuto. Ficar na cama ou simplesmente em casa passou a ser uma excepção que só se confirma quando o cansaço o exige. E o cansaço não existe por causa do estágio, mas por causa das poucas horas livres que me sobram para resolver o que ficou pendente, mesmo depois de um mês livre de descanso após o Regresso.

Estou mais tranquila, mais discreta. Mas o sentimento mantém-se, as saudades da Alemanha são imensuráveis.

Mas sorrio. Afinal, há um ano, quem diria que hoje estaria assim? Ter saudades constantes da Alemanha é uma arrogância, sei-o. Mas a Alemanha tirou-me muito daquilo que eu tinha de mau, por isso não sinto que fosse justo referir-me à Alemanha como aquela-experiência-que-tem-sempre-um-fim-e-nos-deixa-na-depressão-pós-Erasmus-que-ao-fim-de-três-meses-passa. Não, eu não sinto que vá passar, nem quero que passe. Porque não quero voltar ao pessimismo que sempre me rotulou.

É irónico como visto o meu pessimismo de hoje com um sorriso. Hoje é diferente. Hoje sei que as coisas não se adivinham fáceis, mas em vez de desistir previamente, agora eu quero enfrentá-las. Afinal, não foi assim tão difícil como eu pintava...

O que me preocupa é perceber que podemos mudar de ideias de um momento para o outro. De ideias, de ambições, de sonhos, de talentos. A essência, aquela que ficou provado que se mantém, essa ajuda-nos a lidar com a mudança. Mas não deixa de ser difícil lidar com tudo isto.

Forçaram-me a perder o encanto pelo jornalismo. E como eu passei a acreditar que tudo acontece por um motivo, “gosto” de pensar que estou ali porque era preciso perceber as coisas por outro prisma. Não fui parar a um jornal centnário nem saio à rua de bloco de notas à procura de estórias exclusivas. E se eu disser que no fundo eu sempre soube que nunca quis isso para mim, que nunca foi essa a definição do meu “quero ser jornalista”, sei que à minha volta chovem “não digas disparates, só dizes isso porque estás num sítio onde o jornalismo não é padrão”.

Não sei como clarificar, mas a verdade parece-me simples: não gosto disto por aí além, e partimos do pressuposto que sonhamos com um curso que nos leve a fazer algo que adoramos. E no entanto a minha redacção é um canto extremamente acolhedor. Estou rodeada de pessoas pacientes e interessadas em ajudar e em ensinar, sem nunca esquecer que fazemos parte dos tristes estagiários não remunerados. Tenho um director e dois editores a agradecer todos os dias pelo nosso trabalho. Tenho discussões gerais sobre política, jornalismo, actualidade. Lemos os jornais todos, vemos e ouvimos os noticiários todos. O “refresh” à Agência Lusa é constante, estamos permamentemente a saber em primeira mão aquilo que acontece. Tenho o stress à minha volta quando a noite cai e os jornais, desde o Diário de Notícias ao 24 Horas, arrancam com os gritos do “quem fez as fotos da página 24?”, “despachem-se com a última página” ou “hoje não há merda nenhuma que dê para manchete”.

Tenho tudo isto e sinto-me privilegiada por fazer parte de um estatuto, apesar de tudo, de respeito. Mas ao fim de um mês tudo isto deixou de ser novidade para passar a ser prova de que não preciso de sacrificar a minha vida por exclusivos e últimas horas, que nos tiram vida pessoal durante tempo indeterminado e que não nos dão dinheiro. Não faltaram avisos quando escolhi aquele curso, mas quem é que tem estas noções aos18 anos?

Não é arrogância. É, acima de tudo, desilusão, por me ter descoberto virada para o lado oposto, quando tanta gente à minha volta confirmou, pelo contrário, que quer fazer isto para o resto da vida.

A probabilidade de tudo isto se justificar pelo simples facto de o meu trabalho não passar por sair em reportagem é muito ínfima. Sinto-o.

E agora, o que me resta?

Agora restam-me as saudades da Alemanha, resta-me a Internet que todos os dias me diz algo novo sobre trabalho e formação algures na Europa, resta-me a rotina familiar que não tive durante um ano, restam-me os sorrisos dos portugueses, o sentido de humor, as pessoas divertidas e as amizades próximas. Restam-me os e-mails para a Alemanha, para a Irlanda, para a Holanda, para Espanha, para a República Checa, para o Brasil. Restam-me as folgas para valorizar este sol insubstituível, quando na Alemanha por esta altura as noites chegam já aos zero graus.

E resta-me um sorriso, porque aprendi que com calma e sorrisos as dificuldade se relativizam. Por enquanto fico aqui no nosso cantinho privilegiado a ver o que se passa lá fora. Com um pé já dentro das estatísticas dos licenciados desempregados.

Por enquanto vou chorando as saudades da Alemanha. Mas o meu sangue é português... por isso, “logo se vê”.

06 outubro, 2007

Acho que foi por isso que, há um ano, consegui.

«Não consigo ter saudades, porque não quero, nem encaro mais o amor como uma possessão. Não consigo ter saudades, porque acredito no amor que sinto em cada momento, mesmo distante; porque o carinho dos que me amam está em mim, no meu respirar, nesse acordar com sorriso, nesse meu querer viver intensamente, nessa confiança na Vida que me trouxe a este outro canto do mundo.

O amor é energia, um fluxo sem limite. Somos nós, os que continuamente precisamos de etiquetas. A tal ausência de saudade é consequência duma liberdade conquistada, de um espírito sem fronteiras, duma bagagem que transporto no meu olhar.»

Alfredo Hervías y Mendizábal