22 janeiro, 2006

Era uma vez uma carta



Toda a magia partia de uma carta de um papel amarelado selada a lacre. Do pombo à criada assim se fazia unir o amor de dois jovens, ou adultos, ou amantes comprometidos. O respeito era a ameaça constante e assim o amor parecia ter mais força e razão de ser. Um “amo-te” manuscrito numa caligrafia antiquada, rebocada e completa fazia os sonhos dos apaixonados. Sem tréguas, levava a loucuras irreversíveis. Especulava-se, imaginava-se, a ansiedade pela carta entregue em mãos alimentava a paixão.

As pessoas movimentaram-se, transformaram-se, mudaram de habitação. No campo ou na cidade os encontros conquistaram legitimidade, aos poucos a proibição de seguir a vontade própria constituiu um atentado à independência de uma individualidade tão recalcada.

O tempo em que a vida definiu que eu deveria enfrentar a puberdade e a adolescência sofreu, ele próprio, uma evolução. Esperei ansiosamente por um encontro, consciencializei-me daquilo que a visão me poderia mostrar. Acordava e era esse o meu desejo, ver, esperar, imaginar-me a dizer algo cara a cara. Os bilhetes eram uma opção, num papel branco pautado, rasgado e deitado fora por ser banalmente barato. Também o “beep”, não tão usual por obrigar a divulgação de muitos algarismos entre muitas pessoas, serviu para consolidar intrigas, declarar o que a presença física bloqueava, quebrar segredos e assustar.

Eis o telemóvel. De repente tive um. Era grande, preto e pesado, o ecrã era verde e pequeno. Com números pessoais a divulgarem-se aos poucos, comecei a optar pela declaração via “mensagem escrita”, vulgo nome para aquilo que se designa hoje de “SMS”. Tudo o que escrevia cabia apenas numa mensagem e assim me controlava por ter vergonha de telefonar. Continuava a telefonar apenas pelo telefone, vulgo nome para o que chamamos hoje de “telefone fixo”, tal a importância de garantir a diferenciação. Todas as letras, sem engolir nenhuma, eram maiúsculas. Não fazia juras de amor eterno, apenas confessava a ansiedade de uma imagem visível que não me faria falar.

Mais depressa ainda vi todos os telemóveis em meu redor a serem renovados. De repente mais pequenos, de repente mais leves, de repente mais funcionais e mais caros. De repente com um ecrã maior onde se via melhor a “SMS”. No mês seguinte, o topo de gama punha o outro pobre a um canto, fazendo os adolescentes mais novos que eu chorar por um, mais do que choravam por um amor perdido. A uma velocidade estonteante os telemóveis encheram as montras e a publicidade aos telemóveis encheu o horário nobre do pequeno ecrã televisivo, para nunca mais desaparecer.

O conceito mudou. Da única hipótese comunicativa em que consistia a carta manuscrita passámos para a mensagem digital, o e-mail, a SMS. Os encontros com a genuinidade da aparência que observamos são substituídos pelas MMS. O que for escrito, escreve-se na Internet, onde um qualquer portal “www” dá um recado rápido sem perda de tempo nem de dinheiro. Agora, o que importa é “mostrar o que quero dizer”. Fotografa o nada, clica, legenda, envia. Como se não houvesse mesmo palavras para descrever. Do outro lado é recebida a declaração, a expressão de um amor temporário em caras deformadas e palavras abreviadas. Este novo pombo apita estridentemente durante a noite, para tocar o aviso urgente e sem espera de que alguém se lembrou de nós ou para deixar uma mera mensagem. Se não apetecer não lê, se houver falha técnica não chega a receber sequer, se não gostar do que ler apaga, sem tempo para a reflexão feita ao rasgar e ao queimar uma carta. Não há tempo para chorar enquanto se apaga uma SMS. Não preciso de querer contar a alguém o que outro alguém me disse, porque é possível lê-lo num objecto que vem sempre connosco e que abandonamos à mercê alheia quando vamos à casa-de-banho de um café.

O que ninguém sabia que podia ser fruto ou objecto de discussão, passa a sê-lo. Via SMS. É mais prático, mais directo, mais polémico. As verdades dizem-se de telemóvel para telemóvel, de um computador para outro computador, para num café não se saber como abordar o assunto exposto por escrito. As discussões criam-se numa mensagem escrita. A aproximação é também mais viável, quando o horário laboral ou as férias suscitam a saudade, a ansiedade e a vontade de saber e dizer a cada minuto. O correio manual é antiquado, é lento, serve agora para resolver questões passadas e que o tempo também demorou demasiado a pôr na mesa.

De repente, uma “SMS para o 3939” devolve-me uma quadra de amor que posso enviar ao outro adolescente sem ler e sem sentir. Se mudar o número, posso até insultar a minha ex-melhor amiga. Para outro conjunto de quatro algarismos tenho a sorte de receber fotografias de uma qualquer pop ou pornostar. Gosto que a minha música preferida toque para me lembrar que alguém me quer dizer alguma coisa.

Nada se diz, tudo se envia dito.

As relações entre as pessoas mudam consoante a comunicação que elas estabelecem entre si. E as relações fazem a vida das pessoas e do Mundo. Por tudo isto e tanto mais, gastei já três anos de tempo a estudar o que é, afinal, a Comunicação.

6 comentários:

Chicotadas disse...

"Nada se diz, tudo se envia dito"...não podias ter mais razão, não o podias dizer de uma forma mais simples e bonita. É bem melhor dizer do que enviar, mas ao menos que se envie algo nosso, algo escrito a pensar realmente no outro, como eu há pouco tempo recebi...é surpreendente o efeito que umas poucas palavras certas podem fazer em nós...
abaixo o "ligue 3939 e receba uma msg de amor"!!
Beijo enorme

PedroSilva disse...

Ora mas que muito excelente (mas nada surpreendente, vindo de quem a faz) reflexão sobre a comunicação digital. O meu medo é começares assim e acabares a dar aulas no nosso curso ;)
e viva as férias para poder ler mais textos neste teu espaço que amavelmente partilhas connosco.
Sehr gut, Frau Tana

ARN disse...

Cara Ded Babo, às vezes dou por mim a pensar nas saudades que tenho do tempo que nunca foi meu e dos hábitos a que nunca me habituei...mais um contraste da minha vida! As cartas ainda marcaram a minha pré-adolescência e ainda me alimentaram uns namoricos...mas sem dúvida que as sms as substituiram cruelmente. Tenho muita pena disso. Perdemos muita coisa: o imediato da sms já não nos dá tempo para sofrer a sério, para amar a sério, para pensar e fazer filmes da nossa vida. "ENVIA", "RECEBE" e já está. Sabemos sempre onde ele está e ja não ficamos preocupadas, nem com as saudades que dantes torturavam e embelezavam as relações. Ao mesmo tempo rendi-me a toda a tecnologia e condeno-a pelo que ela nos tornou. Sei bem que me encaixaria melhor naquela época do jornalismo romântico, da máquina de escrever, em que para montar uma história se corria uma cidade, em que as redacções nunca paravam, onde as ameaças corrompiam e a luta pela liberdade era o mote... que saudades daquilo que nunca fui!
Bj grande, Chef Raquel

Anónimo disse...

Ah que texto tão giro!!!
Como sempre aliás!!
Penso muitas vezes nisso...é bom ter telemóveis e poder comunicar facilmente com aqueles de quem mais gostamos. Mas...
Onde está a nossa capacidade de dizer as coisas olhos nos olhos?
Por vezes é difícil, mas faz toda a diferença!!

Beijinho grande

Catarina disse...

Felizmente posso dizer que ainda escrevo cartas. E muitas vezes o que digo nelas é muito mais do que diria numa sms.
Como diria Álvaro de Campos, "Todas as cartas de amor são ridículas". Talvez por isso as pessoas pensem que uma sms pode simplificar, desmistificar o ridículo. Mas não. Tira-lhe a magia. A memória de palavras caligrafadas. Palavras que pertencem verdadeiramente a alguém.
Não digo que não mando sms's em vez de cartas. Estaria a mentir. Mas as cartas alimentam-me mais e fazem com que a minha sinceridade seja maior. E como tu dizes, não se apagam. A tortura de ter que queimar ou deitar para o lixo uma carta é incomparável ao simples gesto de apagar uma sms. É mais fácil, sofre-se menos. Talvez por isso as relações estejam mais "frias", mais electrónicas.
Gosto de escrever. Gosto de sentir o sorriso de quem amo perto de mim (não através de uma sms). Mas os tempos que correm também não ajudam. A distância é deveras um tormento. :(
Beijos para ti amiga do coração.
MissU*

Anónimo disse...

Sinto falta da altura que escrevia cartas... Por vezes até já me questiono se ainda sei escrever alguma coisa de jeito... De uma coisa tenho a certeza: não consigo exprimir numa sms o que exprimo numa carta! O meu amor surgiu das cartas e, por isso, a elas muito fico a dever! E a ti, claro, my dear Tana, por me fazeres olhar para as coisas com uma perspectiva diferente! Bjinhux!*