Estes passarinhos são muito meus amigos.
26 fevereiro, 2006
Asas
Estes passarinhos são muito meus amigos.
21 fevereiro, 2006
Obsessões

É inevitável ouvir as conversas alheias enquanto me visto no balneário de um ginásio. Duas senhoras de meia idade, encasacando os seus padrões burberry e outros quadriculados, antes de tratarem as suas poupas na zona dos secadores, falam sobre “a vida”. A mais faladora (nestas situações há sempre uma que fala mais e mais alto, tanto que o que a outra disse passou-me ao lado) começou por dizer “não tenho obsessões na vida”. Do pouco que percebi, achei a senhora descontraída e sem razões de queixa. “Continuo a viajar e a passear como quero”, diz ela. Pouco tempo depois, conta à sua dialogante, que não deve conhecer há muito tempo, ter-se casado três vezes, a última com 49 anos.
Não ouvi muito mais, para pena minha, porque ainda tinha de arrumar o saco e ela foi para os secadores. Fiquei curiosa quanto à vida da senhora.
Mas com isto tudo, porque eu não gosto de me limitar a ouvir, pus-me a pensar. Há quem diga que não cometer excessos de vez em quando faz mal a si mesmo, não aproveita bem a vida. Outros dizem que fazer as coisas com moderação permite-nos conhecer um pouco de tudo de uma forma saudável e enriquecedora. Pois eu acho que a primeira hipótese faz mais sentido. A segunda parece soar a projectos inacabados, a querer provar sem nunca saborear até ao fim, sem aprender com o arrependimento de ter exagerado, sem, enfim, matar a curiosidade, seja de que tipo for.
Ainda assim, acho que não sou obcecada por nada. Claro, se não contarmos com a gastronomia. E talvez com os meus defeitos. Com as minhas indecisões ou a minha incapacidade de me decidir sobre qualquer coisa. E se não contarmos com Nova Iorque.
Tenho uma força implacável para criticar estas minhas incapacidades, ou a minha insistência para auto-incapacitar-me, que irrita tanta gente. Confundo-me propositadamente, ao ouvir sobre a vida dos outros, velhos, novos, ricos, pobres, portugueses ou patrióticos. Acho sempre que eles escolheram o caminho certo. É como em criança. Quero a boneca daquela menina, no instante seguinte tenho-a e nem olho para ela porque quero a boneca que a menina comprou a seguir. Gosto daquela camisola, gosto daquela casa, posso imitar, mas nunca fico satisfeita. Não, não é uma questão de o homem estar permanentemente insatisfeito com o que tem e o que é. É sim uma questão minha, porque eu vejo, efectivamente, os outros a fazer coisas tão simples e eu limitar-me a constatar que eles as fazem. Ou têm. Ou são assim. Olho, assim, com os braços caídos, sem atitude.
O que tem esta reflexão egocêntrica (como sempre) a ver com as obsessões? Bastante até. Não sou obcecada por carros, nem por animais, nem por tabaco, nem por compras, nem por festas, nem por livros, nem por filmes, nem por pessoas. Gosto de saborear de tudo um pouco para poder lamentar-me que não conheço um pouco mais. Gostava de ser obcecada por viagens, se ainda viajasse, ou se já viajasse mais, ou se fosse obcecada por andar de avião, ou se fosse workohollic (uma obsessão, sem dúvida) de forma a semear fortunas, ou se não gostasse do meu país. Não, eu sou muito mais modesta. Queixo-me de tudo, prendo-me às pessoas q.b., não confio no meu futuro profissional, insisto em não me desenvencilhar com nada, e assim esquivo-me a poder dizer que sou obcecada por viagens.
Acho que a senhora do ginásio era obcecada por ela mesma. Queria fazer bem a ela própria e acabava por cair na descontracção de querer afastar as preocupações. Sem grande esforço. E assim viajava, ia ao ginásio com as amigas e até se casava três vezes. Assim é que é, minha senhora. Fico contente que goste de si dessa maneira. Sabe, eu também gostava de ser assim. Assim... como quem diz.
19 fevereiro, 2006
Cai...
Cai a chuva, forte, voa a chuva, grita o vento, une-se o calor do lar. Erguem-se os princípios. Cai a saudade dos que já foram, a saudade da lembrança, a memória das coisas e das pessoas. São emoções que dão vida à saudade que tenho. Caem os dias, dia após dia, cai a marca sobre a alma. Uns partem, alguns voltam. Cai a lágrima no rosto, cai a chuva na cidade.
Cai o sentimento puro, o fogo do amor, nasce a banalidade. Cai o segredo desse amor, aquele que cada um sentia bem para si, bem guardado. Bem protegido, puro, forte, cansado de sofrer, esperançoso e sonhador. Agora ele percorre as ruas das cidades, das metrópoles, do que as liga. Cai o sentimento puro, um tesouro se resiste.
Quando a chuva cai, lembra-nos tudo o que de nós já partiu. Cai no chão, desperta a lembrança, não dá tempo, logo cai mais, mais forte, com um sabor mais confuso. Percorro as ruas da cidade saboreando a imagem do tempo antigo, do que teria havido ali então. Olho a chuva. E eis que ela bate no vidro trazendo a saudade.
16 fevereiro, 2006
Despedida

Foi uma escolha, é só uma experiência, uma pequena aventura com certeza de regresso. Nem chega a meio ano. Meio ano aos vinte anos, depois de aos dezoito já ter dito adeus até ao próximo fim-de-semana, depois de saber que só lá vai divertir-se e estudar um pouco.
Não passa de um momento único e feliz, mas que exige um adeus temporário, que não chega a ser um adeus, é mais um comprovativo de que ficam cá pessoas que lhes transmitirão apoio.
Não passa disto, é verdade. Mas custou-me demais. Vi tudo, naquele aglomerado de pessoas. Vi três amigas que partiram juntas, umas com mais lágrimas do que outras. Vi os Pais que ficaram, tentando atenuar o vazio que, imagino, tê-los-á preenchido. Vazio por uma partida para o bem da filha, vazio por uma partida que deixa saudade, vazio por não poder protegê-la enquanto estiver lá. Vi as amigas, com relações tão diferentes entre elas, também com expressões tão diferentes, a abraçarem-se de maneira diferente enquanto diziam “força”, “juízo” ou “não fiques assim”. Vi os frustrados, como eu, a ver a coragem a subir aquela rampa com malas grandes e um bilhete na mão e a ir-se embora. Vi os namorados que ficaram. Os amores outrora tremidos, agora consolidados e naquele instante fragilizados. O último beijo, o último toque de mãos, o último olhar. O pensar como cada um estará “lá” e não saber o que fazer ou sentir enquanto se estiver cá.
E no entanto não passa disto. Tem tudo para ser só uma coisa boa, mas a despedida teima em transformá-la num momento penoso.
Na hora da despedida, em que controlamos a queda da lágrima para que um sorriso seja visto pelas três que ali mais precisam, na hora da despedida corre freneticamente este rio cá dentro, de lágrimas, de sonhos, de uma frustração revoltante. De uma força de vontade que não tem pernas para correr, apenas voz para se manifestar.
Quando eu der por mim, na hora desta despedida, eu hei-de ter de revirar todo o meu interior para soltar este egoísmo, soltar estas amarras que nunca me libertaram, soltar a energia da força que digo sentir. Mas antes, terei de ter outra destas despedidas. Mais dolorosa, com mais dúvidas, com mais lágrimas, com a revolta da inevitabilidade que não vi hoje. Sem necessidade. Mais esperançosa e com menos força. Por mais tempo. Por muito mais tempo. Com mais sabor a “último”. E aí, talvez a minha vontade ganhe a força do vento, talvez eu respire fundo, talvez eu limpe as lágrimas e... talvez vá.
12 fevereiro, 2006
Miss (New York)… Saigon
Um dos últimos dias de 1997, temperatura secamente negativa. Taxi!, Broadway. Sala aconchegante, muitos, muitos degraus para chegar à nossa fila. Não havia mais meninos da minha idade ali. Mas eu ia ver o espectáculo mesmo assim, representado lá em baixo, num palco olhado a pique.
Não percebia aquele inglês cantado. Fixei apenas as danças, a chinezinha e o soldado grande americano. Fixei as melodias, que já me preencheram em tão tenra idade. E fixei sobretudo aquele helicóptero, real, ali mesmo, dentro de uma sala de espectáculos em Nova Iorque, o seu barulho ensurdecedor, o seu movimento mágico.
Oito anos depois Miss Saigon chegou ao Coliseu dos Recreios. A Lisboa, do outro lado do Atlântico. A uma sala maior, mas menos ampla, com um palco mais pequeno. Inevitavelmente, sem o calor da América. Sem o “No Smoking” no espaço do intervalo e consequentemente com as tossidelas especturadas tipicamente portuguesas que sempre me atormentam. Sem a mesma voz de Kim, penetrantemente agudizada. Sem o helicóptero. Sem o americano obeso ao meu lado, mas o engravatadinho que, ao fim de dez minutos de espectáculo, sai-se com “Preferia ver isto em DVD”.
Oito anos depois pude entender a história de um amor em tempo de guerra, das consequências da falta de comunicação, do conflito de culturas, do elevar dos princípios, do “I would die for you”.
Seria de esperar que, com a visão de oito anos depois, eu me sentisse mais preenchida. Mas ao atravessar a Avenida da Liberdade sei que senti um profundo vazio. Tal como o musical da Broadway “Miss Saigon” perde encanto ao sair de onde nasceu, também eu me angustiei por sentir este “American Dream” cada vez mais longínquo.
06 fevereiro, 2006
No metro
- Sais onde?
- No Campo Pequeno.
- Tens autocarro directo para Almada, não é?
- É.
- A esta hora não há trânsito, pois não?
- Nem por isso. À sexta-feira é que há um pouco mais.
- Chegas a casa a que horas?
- Um quarto para as nove.
- Chegas mais cedo do que eu!
- Sim, e esta é a hora em que chego à minha mãe. Imagina depois.
- Sim, eu também tenho sempre de ir primeiro à minha mãe buscar o miúdo.
- Pois é.
- De manhã é que é pior. Entra na escola às 8h. Podia ser às 8h e meia… Parecendo que não, aquela meia hora faz diferença.
- Ah, eu de manhã, se não tenho pressa, visto o fato de treino e vou levá-lo num instante. É mesmo ali atrás…
- Claro. Vá, sais agora. Até amanhã.
05 fevereiro, 2006
Então… Calhou
Nasci em má altura. Não, não foi um acidente, planearam-me, mas nasci no conformismo da época. Não vivi a monarquia, não vivi os amores proibidos de carta de que falava há dias. Não vivi a primeira guerra mundial, nem a segunda, nem o tempo do Salazar, nem quando não havia computadores ou fotografias só a preto e branco, nem o 25 de Abril.
A minha geração nasceu com o nascimento do terrorismo. Aquele que ataca sem receio, que dispara contra o que vê à frente, por razões que evocam lá de um céu que eu não conheço. A minha geração foi educada, e as subsequentes serão ainda mais, de acordo com o Mal ao qual devemos fugir, o alerta que devemos domesticar dentro de nós contra os perigos e as ameaças de mãos dadas com a desconfiança.
Fazem-nos crianças para termos de perceber, lenta e apavoradamente, que o mundo da fantasia cor-de-rosa não existe de facto. Pior, temos consciência desta realidade quando damos conta que vivemos já no século XXI, o século do fim do mundo, o século de uma Natureza destruída sem tréguas, o século do 11 de Setembro, das infinitas e infindáveis guerras ocidente-oriente.
E então?
Então, a vida mantém o seu sentido. É preciso saboreá-la, seja de que forma for, custe o que custar. Com mais ou menos luz, esperança, crença, confiança ou vontade. Noutra época teria tido outros receios e desilusões em relação ao meu mundo! Se me calhou que aqui estivesse hoje, então devo fazer valer isso.
Não posso evitar, porém, que muitos caminhos me sejam vedados. Por opção, por inevitabilidade, por nunca ter pensado nisso, por receio ou autoridade. É sombriamente misterioso e turvo, demais para se poder confiar. Então fecho-me na minha concha, feliz por este lar dentro do qual posso aprender, escutar, imaginar. De alguma forma, viver. Daqui vejo o mundo, no pequeno ecrã, no jornal que leio, no livro, na rádio. Neste computador que me retira tempo para observar a paisagem que aqui tenho mesmo à minha frente. Poderia observá-la e aprender ainda mais. A diagnosticar as diferenças, a morte lenta da natureza, o céu como horizonte infinito a dar azo aos sonhos que digo ter.
Porque todas as pessoas são diferentes, mesmo dentro de uma só geração. Eu não vejo tanto quanto queria. Obcecada por esse caminho de uma vida de observações, eu limito-me a parar e a imaginar o lá longe. É uma pena. Eu vivo pouco, porque penso demais.