Nem era fim-de-semana, mas à quinta-feira à noite há movimento nas ruas, apesar da paranóia “Arbeit”. Entrei no eléctrico 7 – uma linha ainda desconhecida mas que me passará a ser familiar – e sentei-me.
Percebi então que o cenário era mesmo de fim-de-semana. O silêncio e as caras carrancudas foram substituídos por rádios portáteis e garrafas de cerveja na mão. Dois rapazes de boné sentavam-se pouco à minha frente e falavam alto. Gritaram “Brost!” para um outro grupo que mais à frente se sentava também com cervejas. Ninguém respondeu e na paragem seguinte o grupo saiu.
Poucos instantes depois, um dos rapazes levantou-se e dirigiu-se ao fim da carruagem, passando por mim, para ir falar com um casal que estava sentado. Estando de costas, só consegui ouvir, não ver. Percebi que o rapaz falava sozinho e os dois, numa atitude universal de não responder a acusações em transportes públicos, ficaram calados. Logo de seguida o outro rapaz de boné levanta-se para ir buscar o amigo de volta para o banco, irritado: “Komm mal hier, Mensch!”…
O instinto foi o de pensar “não precisas ter medo, tu sabes bem que os alemães não se metem com as pessoas assim, e mesmo este bêbedo rapidamente deixou o casal em paz”. Desviei o olhar para a janela a fingir descontracção e tentei perceber o texto do heavy metal que eles ouviam. Em vão, só consegui perceber a palavra “Deutschland”. Mas de repente fez-se luz e tudo ficou assustadoramente claro. Um dos rapazes não fez mais do que gritar “Rechtsvolk!” (povo de direita) e esticar o braço direito para cima. Só então olhei com atenção e reparei que por debaixo dos bonés as cabeças dos dois estavam rapadas.
Estremeci, empalideci, o estômago veio-me à boca. Estava sozinha na carruagem com dois neonazis.
Felizmente não faltou muito até entrarem mais pessoas. Desta vez mais atenta, tentei ver as reacções aos dois rapazes que continuavam a falar alto, a beber e a arrotar e pareceu-me estranhamente que todos sabiam do que se tratava. Ou estão habituados e não há razão para ter medo, ou a famosa frieza deste povo esconde o medo de manifestar emoções.
Ainda assim o ritmo cardíaco continuava acelerado demais para eu relaxar como a senhora ao meu lado, que descascava uma tangerina. A minha paragem nunca mais chegava e o silêncio da noite tornava tudo ainda mais pesado. Imaginei como seria se aqueles dois monstros me abordassem. Em Portugal costumo pensar que se fingir que não falo português, desistem. Mas ali, certamente não seria boa ideia escolher outra língua que não o alemão – e mesmo assim eles perceberiam de imediato que eu era estrangeira. Enfim, melhor seria não imaginar. Eles continuavam a destabilizar, rebentando bombas de mau cheiro dentro da carruagem, atirando pequena pirotecnia pela janela assustando os poucos que pela rua passavam… e lançando gargalhadas a seguir. Tal como nos filmes.
Gerichtsweg. Ainda faltava uma paragem para minha casa mas decidi sair e fazer o resto do caminho a pé. Esperei que as portas estivessem quase a fechar para sair de repente, não fosse apetecer-lhes virem atrás de mim. E saí também pela porta que ficava atrás, não a que ficava à frente, bem perto deles.
Erro meu. Tive de passar, por fora, por essa porta. E antes que tivesse medo da proximidade, dei um salto repentino com outra coisa qualquer que eles tinham voltado a atirar para a rua e que explodiu um metro ao meu lado. Quis insultá-los, mas o pânico calou-me e nem levantei os olhos do chão.
Finalmente o eléctrico seguiu e eu corri para casa. Pela primeira vez tive medo de andar por aqui.
5 comentários:
Ai fofinha, que medo. Passei pelo mesmo receio, com o kiko ainda bebé de 6 meses, numa rua de Viena ...os mesmos cabeças rapadas, os mesmos gestos...
a mim so me ocorria a minha tez morena, a minha semelhança com os argentinos, italianos, espanhois e portugueses, a minha pátria alí tão patente, pátria que não é"pura
" nem ariana. ..percebo o teu medo. Não esqueças, contudo, que , infelizemnte, tb aqui existem gangs, de todos os generos e com todas as convicções. todos, em qq lugar, são capazes de "sujar" as mãos em nome de um ideal que não subscrevemos, não entendemos e sempre condenaremos.
Cuidado com as ruas, os silencios e a noite. Cuida bem de ti, como sempre o fizeste.
Beijo, tia tona
q medoo!! nunca é demais repetir q o teu poder de descrição é incrivel, por momentos vi-me mesmo sozinha a tremer por todos os lados!
cuidado c esses doidos!! ai deles que dirijam nem que seja uma palavrita à minha pequena!´
Bjjsss
Há sempre vândalos por todo o lado, mesmo que pensemos que um país ou uma cidade têm tudo para ser perfeita. Nos dias de hoje é triste ver as ideologias desses vândalos e pensar "como é possível?".
Sei que, como em todas as coisas, tu és capaz de tirar boas conclusões dessas monstruosidades...é pensar que a mudança é possível.
Ontem senti a tua falta.
Beijos.
Infelizmente existem pessoas desse género em todo o lado... Até te aperceberes do que esses dois eram, não ficaste tão assustada, para ti não eram nada mais do que dois mitras e muito bebâdos. É bem horrivel pensar como é que esses dois podem pensar, dizer e ouvir o que ouvem sabendo tudo o que sabem e que se passou.
Mas felizmente a Alemanha nazi já acabou, existem sim uns quantos grupos, mas enquanto forem ignorados nada de mal se repetirá. É só não lhes dar força.
Percebo bem o teu medo, mas como em todo o lado, há certos sitios, certas situações menos seguras.
Beijinhos grandes
Miuda, ja viste o filme "América Proibida"? Se não, tb não vejas agora. Mas lembrei-me imediatamente dele. Aqui pelo nosso Portugal, não tarda muito (parece-me) também começará a ser normal identificar neo-nazis nas ruas. Até me pareceu ver hoje o Salazar a almoçar nas amoreiras. Acho mesmo que era ele, mas tive vergonha de ir lá perguntar.
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