
Também deixou de confirmar sempre se tinha o Semesterticket na carteira, porque agora é mais a bicicleta que a leva onde quer. Ainda hoje comprou um cestinho novo para trazer as compras, agora que o sol já não obriga a que tudo esteja protegido da chuva e da neve.
As compras deixaram de ter o toque da novidade; já não traz o dicionário na mala porque habituou-se aos palavrões que tanto procurava decifrar. Wasser sempre ohne Kohlensäure, que água com gás não é água; ou as Mandarinen que não são tão doces como as Clementinen e cabem sempre na mala para matar a fome-de-bolas-de-berlim. O saco dentro da mala já não esquece, e já enfia tudo lá para dentro com uma eficácia muito mais alemã do que no início. Também já não precisa de procurar o visor que mostra o preço, porque os dois-e-trinta-euros-e-cinco-e-quarenta-centimos-bitte em vez de trinta-e-dois-euros-e-quarenta-e-cinco-centimos-bitte já começaram a entranhar. Se há dúvidas desta vez já sabe perguntar, em vez de arriscar comprar um produto que ajuda a engomar em vez do tira-nódoas que procurava.
Mas sobretudo o caminhar - ou o pedalar - pelas ruas de Leipzig deixou de ser tão explorador para dar lugar às rotinas. Se escolhe o Strassenbahn já aproveita o silêncio do povo alemão para ler um livro - que a língua portuguesa dá muita Saudade. E agora já vai tocar à campainha de alguém se não tem nada de urgente para fazer, porque os Termine às tantas horas no Sprechzeit da Frau-qualquer-coisa já não são tão importantes ou regularmente necessários.
Das palavras essenciais passa agora a ter interesse pela Umgangssprache e põe a Franziska a rir-se quando, para o "é indiferente", lhe sai a expressão "es ist mir Wurst" (que traduzida à letra significa "é-me salsicha").
Rotinas tão alteradas, tão entranhadas e novamente tão saboreadas por aquilo que têm de diferente - em relação a tudo o que em duas décadas de vida foi habituada a experienciar. Repara-o agora. Porque agora volta o Sol a brilhar, exactamente como no dia seguinte à noite tremida em que chegou, da qual parece que só tem flashes de memória, nesse dia em que andou de canoa no rio sem se aperceber que aquele sol era uma raridade e que as pessoas usavam excepcionalmente óculos escuros ao passear com a família no parque. Agora os cheiros voltam a ser mais perceptíveis, porque o calor ameaça. Aqueles rasgos de gás que a todos intrigam, entram agora por aquelas narinas que há 6 meses achavam tudo tão... fremd, tão estrangeiro.
Caminha pela Peterstrasse, já não procura uma esfregona (esse instrumento doméstico tão essencial que os alemães substituem por qualquer outra coisa) e sim um presente de aniversário - para os amigos de Portugal, para os amigos Erasmus, para a Franziska que vive com ela, para os seus Tandems, enfim. E no fim passa no supermercado mais próximo, apanha um Apfelsaft e vai bebendo no caminho - que agora já vai conseguindo conduzir a bicicleta só com uma mão. Quando chegar a casa logo pensa no que lhe apetece jantar hoje e espera que os "Freunde" se "meldem" para ver o que se faz hoje à noite.
E em breve, a areia chegará também a casa, regressará o medo do fim do verão e com ele o medo de um Setembro que novamente se adivinha uma incógnita.